Poucas perversões são tão cruéis quanto as promessas que jamais se cumprem. 

Das coisas findas - Parte I


Já havia algum tempo que o quarto de Rômulo havia crescido. Aliás, não somente o quarto, mas todos os cômodos da casa. Já fazia meio ano que isto passara a lhe incomodar com maior frequência. A ampla sala de estar com paredes de vidro era iluminada indiretamente por luminárias, o luxoso tapete felpudo permanecia estrategicamente disposto ao centro, enquanto móveis de aspecto moderno e antigo harmonizavam entre si, moldando o ambiente. A ampla sala-de-estar, assim como os demais cômodos da casa, ainda permaneciam intactos, como se sua residência inteira tivesse se transformado em um sombrio altar à ausência, um relicário de faltas. Lhe parecia incrível a presença da ausência, a ponto de quase se tornar tangível, como se a qualquer momento ela se materializasse e ele pudesse tocá-la, conversar com ela, ou mesmo sentir sua presença gelada sobre a pele. As paredes monocromáticas ainda estavam repletas dos quadros adquiridos em exposições de artistas deconhecidos e duros demais ou de alguns mais experientes em decadência, que Isabelle lhe fazia insistentemente frequentar e não somente, gastar uma pequena fortuna por algo que Cauã, seu filho, agora com sete anos de idade, poderia lhe fazer de graça desde os dois. “Aglomerados de rabiscos”, era o que costumava dizer, enquanto Isabelle revirava os olhos com o eterno ar adolescente de reprovação que sempre mantivera.  

          Isabelle era arquiteta, mas havia se especializado em decoração de interiores antes de Cauã nascer. Era apaixonada por aquilo e dizia que uma casa era um templo e deveria refletir o estado de espírito de seu proprietário. Ela realmente acreditava nisto, e embora tenha sido ela a responsável pela decoração da casa inteira, nada ali presente combinava com seu atual estado emocional. Bem, fora o fato de a casa ter se tornado grande demais. Ou ele, pequeno. Poderia estar mesmo encolhendo com o passar dos anos, já havia lido sobre isto. Já haviam se passado três anos desde o dia em que chorara encolhido e abraçando os joelhos naquele enorme e confortável sofá por nada menos que seis horas ininterruptas. Nunca mais chorou novamente depois daquele dia e as vezes realmente acreditava que aquele fora o dia de sua morte e que desde então, perambulava apenas achando que ainda era composto de matéria orgânica, enquanto na realidade era uma alma penada e perdida que perdeu a passagem para o "Outro Mundo". 

           Rômulo conseguia entendê-la, ele mesmo não fazia idéia de como ela havia um dia casado com ele. Cauã agora morava com a mãe e com um padrasto a quem Rômulo chamava de “O Idiota” e a quem seu filho agora chamava de pai. Fora o golpe mais cruel que sofrera na vida desde que sua memória permitiria lembrar, ver aquele menino com traços idênticos aos seus, chamando O Idiota de pai. Uma afronta que lhe fazia enriquecer a indústria farmacêutica mensalmente, já que não conseguia fazer terapia por achar demasiado dolorido. Já havia se conformado em ser um covarde, o que também era o real motivo de Isabelle, após sua décima quinta decepção – ela havia contado – não ter nunca mais voltado, embora ela mesma nunca houvesse dito isto a ele.

             Seu egoísmo sempre havia conflitado com a maneira cuidadosa e afetuosa de Isabelle. Ele se sentia quase que organicamente incapaz de não machucá-la. A cada vez, saberia que a culpa que sentia o faria atravessar meses tentando se redimir, enquanto ela reagiria da pior forma, e finalmente como uma virada do jogo, passaria a atacá-la e a destruí-la por dentro. A raiva que sentia pelas reações da esposa – ex-esposa, ex-esposa,  tinha que se corrigir sempre – era sentida com o alívio de quem arranca uma estaca do peito. Enquanto sentia raiva, não precisaria se sentir culpado. Sabia, no fundo, o quão injusto era tudo aquilo, mas evitava ao máximo este tipo de pensamento, com medo de acabar como aquele ator que após uma sequência profissional desastrosa e auto-destrutiva caíra no ostracismo, para após isto se enforcar no banheiro. Só ele mesmo sabia o quanto se identificou com este sujeito quando a notícia de seu suicídio inundou os tabloides, mas preferia manter-se alienado desta consciência.


          Havia conhecido Isabelle numa viagem de um mês que fez para Europa quando ainda estava na faculdade, mais precisamente em Paris, e o fato de morarem em cidades vizinhas e voltarem de viagem no mesmo dia faziam ambos pensar que protagonizam uma história de cinema, idéia que fora perdendo o seu aspecto sagrado, assim como tantos outros marcos sagrados que foram lamentavelmente destruídos, arrancando de dentro do peito dos dois um pedaço da alma, cada vez. Sentia-se um criminoso por isto, embora tentasse de todas as formas se convencer de que estava melhor assim. Procurava não se olhar muito no espelho, mas invariavelmente tinha que fazer isto para se barbear pelas manhãs. Seus olhos já tinham adquirido um aspecto pesado demais para a idade que ainda pensava que tinha, mesmo que a juventude não tivesse lhe abandonado ainda, pelo menos cronologicamente. 

           Aquele parecia ser mais um dia comum em sua rotina. Acordar às 9:00 da manhã, pesado, como se toda vida não vivida até ali lhe esmagasse e a gravidade do mundo inteiro tivesse se concentrado em sua cama enorme, lhe impedindo de levantar, buscar o jornal na porta de casa segurando uma xícara de café passado na mão, acenar para a vizinha de 70 anos que regava as plantas religiosamente no mesmo horário e lhe olhava sempre com aquele olhar materno que mescla pena com reprovação, passar o dia fora trabalhando em algo que não conseguia mais encontrar sentido algum, e finalmente voltar para casa quando o sol já havia há tempos deixado o horizonte. As vezes, sua memória rebelde e indomável lhe fazia lembrar o quanto um sorriso de Isabelle injetava vida, pura e pulsante, diretamente dentro de suas veias e o quanto era apaixonado pela forma apaixonada com que ela se dedicava ao que fazia. A tudo que fazia, inclusive ser sua mulher. Mas aquele não foi um dia comum. Retornava de mais uma jornada diária de trabalho com o céu já tomado de estrelas e enquanto apertava com força descomunal a ponto de lhe machucar os dedos o controle do portão eletrônico de acesso à garagem que parecia ter esgotado a pilha,  um vulto negro pairou ao lado da janela de seu carro. A apatia imensa que parecia ter se adonado dele deu lugar a outra coisa. O horror agora lhe tomava e lhe subia pelos membros, ao vislumbrar que o vulto passara a delinear uma forma humana. 

Do que não tem fim(e suas doses diárias)*


Sentes como é frio?
Minguado do tempo
O imorredouro dia de adeus
A hora

Sentes o toque sereno?
O afago imperceptível
Como o da pele deslizando sobre o mar,
com seus lábios e espuma?

Afogas no desespero, meu anjo,
acorda que já é saudade.
Ainda está quente.

Meus olhos correm para o teu peito desordeiro
E fogem para além das tuas luas e catástrofes
Pois meus passos já buscam o compasso
dos meus próprios passos

Passo inevitavelmente a me reencontrar
Na dissoluta força do teu abraço
Enquanto teus braços dissolvem o ritmo do tempo

Os ecos dos teus soluços disfarçados
Ressoam como brisas
Viram vendaval
Derrubam tuas estrelas como beijos cadentes
E escorrem salgados
Nas sedas dos suspiros e mágoa,
manchadas com o vermelho do teu sangue

O inferno foi reservado para o artista
que de tão vivo padece
Nos abismos desenhados das cidades
Dentro e fora das grades
Pois há celas até para os santos
Enquanto anjos despencam de prédios
Para ganhar asas
Para ganhar asas
Para ganhar asas

O asfalto ainda é quente
O sangue ainda é quente
Os braços correm para as valas
Pois a vontade ainda é quente

Mas acabou
O corpo é frio


*Escrito em 2001, quando eu era adolescente.

Imunodeficiência afetiva



No fundo, no fundo, toda essa raiva não passa de um 
choro trancado, atado à matriz da alma, que talvez nunca possa 
ser convertido em lágrima. Não havia como ser de outro modo. 
Ninguém, afinal, consegue sair imune à própria história.
(...)

Felicidade Virtual



Inferno astral, não havia outra explicação, Rita se repetia. O saldo do último mês fora a demissão do emprego, que numa explosão de raiva acumulada teve direito a alarde de impropérios lançados àquele carrasco sem noção do chefe, ter conhecido de longe a atual do ex que tem a maior bandeira de mulher melancia, além da briga homérica com a melhor amiga de infância por ensejo injustificável e estupidamente fútil. Não bastasse chegou a conta do cartão de crédito, a psicóloga entrou em férias, uma variz até então jamais existente lhe surgiu na coxa esquerda, a balança denunciando que doces acumulavam quilos a mais ao invés de afeto, sem falar no cabelo esticado a base de chapinha diária, que na identidade secreta das crespas já havia virado um sabugo de milho.

Nem quis lembrar da situação amorosa, e que andou se encantando com o maior filhadaputa da cidade, na enésima, ridícula e crônica ilusão de que sapos poderiam andar à cavalo. Quis ainda menos pensar em sua família que lembrava qualquer filme tragicômico de nome duvidoso onde nem o diretor suporta assistir até o final. Tudo errado, fora tudo o que já é torto no mundo por si, só podia ser algum complô persecutório dos astros. Carma quiçá, matutava.

A insônia, permeada de tédio e tendência autodestrutiva a faziam atravessar madrugadas cotidianas na virtualidade das redes sociais, por onde espionava milhares de fotos, comentários, recados, vídeos e publicações de amigos, inimigos, ou desconhecidos completos com alguma ligação entre os primeiros. Pela tela, via a amiga feinha dos tempos de colégio, agora enxuta e repaginada, tomando champagne a bordo de uma lancha ao lado de outras mulheres com rosto e corpo de comercial de cerveja, uma mais abrolhada que a outra, todas com aquele inescrupuloso sorriso de sou-linda-gostosa-rica-me-basto-morda-se. Em outro um rapaz que há muito tempo não via e por quem ela teve a maior e mais patética paixão platônica da história dos segundos-graus, casava com uma loira que parecia de plástico. Brindavam e dançavam com aqueles olhares de até que a morte nos separe, mas quem morria mesmo era Rita, de inveja.

Todos os seus amigos, amigos de amigos, e amigos dos amigos dos amigos, eram só sorrisos: casavam, se formavam, viajavam para Europa, esquiavam, tinham o cabelo reluzente e usavam fio-dental na praia sem medo algum. Famílias se abraçavam no Natal, cujos registros eram legendados com melhor mãe, pai, sobrinho, cachorro ou papagaio do mundo. As pessoas eram promovidas, recebiam aumentos, faziam pós graduação no exterior, coisa e tal. Ninguém tinha barriga, crise existencial, solidão, coração arrebentado, desilusão. Não se via ninguém espumando de ódio por ter que pagar impostos absurdos todo ano pra ter o que já se tem e que já foi pago, espumando por lá, só champagnes. Se perguntava se ali nenhum sujeito sentia, ainda que só vez que outra, a alma inteira encolher e embolar no meio do peito por qualquer coisa, decepção, tristeza, perda, meninos com a infância roubada que aparecem pedindo alguma esmola de dinheiro e dignidade nas sinaleiras.

Será que pra ninguém mais dava errado, não acontecia, ou acontecia justamente o que nunca deveria ter acontecido? Será que a única azarada seria ela? Já estaria autorizada a começar a sentir pena de si mesma? Ou talvez, existiria algum mundo ao qual ela não tinha acesso. Sem fome, sem mágoa, sem lugar esquerdo da cama e do peito vazios. Um lugar que nunca toca funk, todos tem pele boa, são belos, unidos e se amam na saúde só, porque nem doença deve existir. Nada de caos, tumulto, algazarra interna, trânsito, ódio, injustiça, onde famílias sentam em uma mesa decorada com flores e frutas no meio do jardim aos domingos. Um mundo feliz, do qual ela tinha ficado de fora. Sentiu o desalento pegar fundo, e antes de desligar o computador e dormir pedindo para não acordar mais, ela entrou em seu próprio perfil. Se chocou com o que viu.

Lá estava ela na praia, sorriso largo pra foto que nem parecia falso, melhor forma física que já teve, após dois meses de dieta da sopa. Na outra, entre pessoas que até pareciam amigos de infância, gente que na verdade mal conhecia, mas encheu a cara junto na formatura da Fernanda e posou abraçado. Em outra, uma viagem que fez pro nordeste, paga em todas as prestações possíveis, quando conheceu lugares paradisíacos. Tinha uma lá do ano-novo de uns quatro anos atrás com a família, quem visse até pensaria. Em todos os registros ela aparecia bonita, despreocupada, leve,... feliz. Então Rita entendeu tudo e foi dormir bem mais tranqüila. Estava sim, dentro.

O preço do sorriso


Lógico que é um contrasenso presentear em datas pré-determinadas, afinal a obrigatoriedade acaba com qualquer possibilidade de simbolização, que seria o significado do presente à priori. Numa destas  incursões natalinas, ao invés de vitrines e preços eu olhei pessoas. No afã das compras, o calor, a correria, as filas, as grosserias, as sacolas, os semblantes sérios. O que vi foi tristeza por tudo e pensava, será que ninguém está percebendo o que está acontecendo ? Será que sou só eu ?

A premissa é que não tem como não comprar, é regulamento, o cúmulo da desconsideração não fazê-lo, assim manda a lei da cultura. A indústria lucra, e só, me parece. Obedeço, mortal que sou e não louca o suficiente para deixar familiares sem presente no Natal, até porque ninguém entenderia meu protesto. No entanto, é engraçado pensar que não pago por um produto, mas por um sorriso. E que é por isso que enfrento um shopping lotado, depois de rodar horas atrás de uma vaga, enfrentar fila no caixa, além de ter fôlego para procurar no meio dessa loucura algo que tenha significado, repetindo em silêncio no meio da multidão falante: vale o sorriso, vale o sorriso.

Nunca mais


Perdeu a conta de quanto, de como, de quais. Não quis saber os meios ou fins. Estava já por demais cansado dos fins. Lutou com afinco, mas desistiu. Não soube explicar, cessou, morreu. Chegara à exaustão da espera pelo que não vem, pelo que não é, não há, nem jamais será, seria ou foi. Havia se deixado levar, no entanto, sabia que deixou e levou também. Pensou para garantir, mas desta vez se permitiu sentir antes. Nem mais uma palavra, nem um dia, nem mais uma gota, nada. 

Alisou então as cordas bambas do violão há tanto esquecido, e por um breve instante parou sentado a sua frente. Lembrou de si mesmo quando menino, reconheceu-se, algo que de tão verdadeiro parecia surreal lhe tomou pelo cerne. Então tudo se fez calmo, até o fervor calou. Calçou a velha jeans surrada e saiu sem saber pra onde. Pela primeira vez em muito tempo sentiu o vento abruptamente de encontro à pele. Sentiu-se vivo. Sorriu de volta e se foi, levando em si apenas duas certezas no barco lançado ao alto mar dos acasos: que foi melhor assim, e que não voltaria, nunca mais.

Paradoxo psíquico


Já muito atordoado, confuso, cansado, o pobre Ego esgotado por ouvir ordens tão distintas, recorreu aos seus desconexos orientadores – Superego e Id – convocando-lhes para um reunião privada entre os três. Ciente do risco do encontro convocou uma segurança treinada, de currículo freudiano e aparente ausência dos seus próprios três, para que assistisse a ocorrência. Como contrato prévio, o Ego estabeleceu com sua segurança o direito de intervir a qualquer momento que achasse necessário, de preferência bem antes que ambos começassem a destruir um ao outro (e consequentemente, a ele próprio).

O encontro, marcado para as 8 horas da manhã já começou mal. O Id se atrasou. O Superego chegou as 7:55, e ficou do lado de fora esperando até fechar 8:00 em ponto para bater na porta. Tinha o cabelo preso, vestia uma calça jeans de cor escura, e uma blusa de cor neutra, um lenço no pescoço, discretos brincos de pérola e scarpins de salto médio. No rosto, um leve brilho nos lábios, um pouco de rímel nos cílios, um sorriso simpático de bom dia e uma postura de bailarina. Sentou-se e cruzou a perna, comentou sobre o tempo e perguntou ironicamente pelo Id. “Ah claro, só podia”.

Depois de uns 10 minutos de espera chegou o Id. Vinha com um Ipod ainda ligado e mascava chiclete de forma que o Superego achava vulgar. Usava um vestido curto, de ombros nus, cílios curvados, maquiagem marcante, sandálias de salto alto, corrente no tornozelo, brincos grandes e pelo menos 3 pulseiras diferentes no pulso. “Tanta pulseira e nenhum relógio”, pensou o Superego, já observando como ia se sentar com aquela saia tão curta. O Id estourando a bola de chiclete desculpou-se pelo atraso, andou até a poltrona e sentou-se numa cruzada acrobática de pernas dando um sorrisinho debochado para o olhar acusador do superego.

Ego – Bem, todos sabem por que estamos aqui hoje. Precisamos agir em equipe e percebo um profundo desligamento entre vocês dois. Entendam que não sei mais o que fazer. Cabe a mim a decisão final, mas as opiniões de vocês dois são completamente opostas.

Id – O Superego é um moralista!

S.E. – E o Id é um animal.

Ego – Ok, atenção! Id, por favor não grite. Não peço que vocês se adorem, mas que possam conversar. Por exemplo, vamos falar sobre a situação atual. É sim ou não, afinal?

Id – Sim, sim, sim!!!

S.E – Lógico que não, retardado! Tu não pensa nas conseqüências dos teus atos?

Id – Pra quê? Quem responde por isso é o Ego, não eu.

Ego – Pois é né?

Id – EU QUEROOOOOOOOOOOOOOOOOO!

S.E. – Mas como grita!

Id – “Mas como grita” (imitando debochadamente). Então me diz, e porque não?

S.E. – Ora, “porque não”. Porque tem conseqüências, tem riscos, é perigoso.

Id – E o que não tem? Se fosse por ti, jamais faríamos nada.

S.E. – E se fosse por ti já teríamos morrido!

Id – Cagão!

S.E. – Maluco!

Ego – Chega já. Por favor, vocês dois. Eu só quero um caminho, uma única direção. Me ajudem.

S.E. – É simples. Basta decidir entre um de nós. Tendo em mente que nosso amigo Id sempre vai dar conselhos sem cabimento, é claro.

Id – Nem sempre. Agora por exemplo, sugiro cortar sua cabeça.

S.E – Ah, pronto! De Alice no País das Maravilhas decidiu virar Rainha de Copas.

Id – Nem vem, quem corta algo aqui é tu, castrador de uma figa.

S.E. – Caro Ego, minha decisão é não. Irredutivelmente. Jamais, nunca mais. Não dê ouvidos ao Id. Ele é imaturo, imediatista, inconseqüente. Sei que por vezes ele te convence, com seu jeito insistente e pidão, mas neste caso especifico devo lhe aconselhar. Decidir por sim pode colocar todos nós em risco, a estrutura enfim. É arriscado demais, há muita coisa em jogo. Além de quê, o próprio Id ficou furioso e desmedido com esta situação. Ele é a contradição em si.

Id – Em minha defesa, não sou uma contradição, sou a tua contradição. Fiquei furioso sim, porém amor e ódio andam juntos, e teu pensamento é tão linear que não consegue entender a flutuação dos sentimentos. A minha resposta é sim porque o sentimento diz sim. Eu sou o que pulsa, e tu apenas um chato que fica importunando nosso caríssimo Ego a todo instante, dizendo-lhe que tal coisa não é adequada, possível, permitida, segura, mas que saco!

O Ego encara a segurança, que lhe olha atentamente. Quando o relógio sinaliza o final da reunião, em um único suspiro ele lamenta:

– Desisto de qualquer tentativa de acordo. Acho que isso vai ser eterno. Me resta a angústia de nunca saber se quem escutei me deu ou não um bom conselho.

Havia uma flor cerrada




Como explicar a tristeza? A conheço tão de perto. Ela tem um gosto seco, áspero, corrosivo, e tão familiar que a própria constatação me consome. Mas dessa vez ela me toma encoberta num véu incógnito, percorro agora um território tão desconhecido, sem saber pra onde nem quando, nem o que vai restar de mim caso chegue. Nada disso, nunca, foi minha escolha. Estou tão triste que não há interface de linguagem. Quisera eu uma mão adentrando garganta abaixo e arrancando o buraco negro que jaz entre meus pulmões.

Há um espaço insustentavelmente vazio. Ele se expande pelos minutos do relógio. Cada segundo é um ano a menos, já não sei se para frente ou para trás. Como são frágeis estas tais linhas tênues, posto que outrora o mesmo espaço fora tão afortunadamente cheio, repleto, rico. Tanto faz. Não estou mais morrendo, quem está ainda vive.

Tem algo morto dentro de mim. Te chamei de assassino ainda incrédula sobre o fim. Terias tu, matado minha capacidade de confiar, e aquela parte que, por causa de cada parte, olhar ou pequeno gesto teu, sorria vencedora em conseguir acreditar mais um pouquinho no mundo? Isto me soa tão injusto que chega a ser psiquicamente ilícito, mas qual a indenização capaz de reparar um dano na alma?

Me sinto roubada. Sinto que fui roubada, em algo tão precioso, e de forma tão majestosa que estou empobrecida por dentro. Me sinto escassa, roída, e não posso mais levantar agora, em parte porque não consigo, em outra porque estou tão absurdamente cansada que nem sei como.

Havia um flor cerrada, que foi convencida a se abrir. A flor se abriu com todo o esforço e coragem que lhe restara nas raízes já inférteis, mas com tanto encanto e vontade que fora a mais bela já testemunhada por qualquer retina. E então, no auge do seu esplendor, se fez inverno,. A flor secou, sem deixar nenhum rastro de seu inebriante aroma, cor ou milagre. Pereceu com dor, e morreu triste.


Ambivalência



Alô? Oi, sou eu. Como eu quem, não te faz que tu sabe muito bem que sou eu. Ah tá, e não aparece ali na telinha do teu celular. Como assim deletou meu nome da agenda? Mas tu é muito infantil mesmo. Tu continua o mesmo de sempre! Ora, liguei por que sou adulta o suficiente para pensar que tudo bem querer saber como tu está de forma civilizada, o que não me parece ser teu caso. É, adulta sim, por quê? Que crises? Eu nunca tive crises, tu sabe muito bem que TPM é um momento em que nenhuma mulher pode responder por si. Que desculpa minha o quê! Eu sempre fui a pessoa madura dessa relação, tu sabe muito bem, com a pequena diferença de que eu sempre quis ter do meu lado um homem e não um filho. É filho, sim! Ou tu achas que ter que ficar mandando ir pro banho, comer direito, cortar as unhas, abaixar a tampa da privada, avisar quando vai te atrasar é algo que uma mulher espera ter que fazer com um homem barbado que não seja seu filho? Mas como assim controle? Eu nunca te controlei! Tu tem uma dissociação entre controle e cuidado! É mentira tua, pura projeção, porque tu sabe muito bem que se existiu algum controlador sempre foi tu! Ah, e quanto aos “onde, com quem, que horas, que saia é essa, que decote é esse, tu vai sair assim?”! Mas que cretino, exibicionista para se vestir é a tua mãe! Ah, falei da mamãe, não pode falar da mamãe que o bebê fica brabo. Crianção! Aliás, teu ciúme quanto aos olhares alheios era injustificado, porque os outros homens apenas viam o que tu mesmo não conseguia ver! Ah tá, eu que tinha que te perguntar se estava bonita, tu nunca dizia espontaneamente. Imagina só o que é para uma mulher ver outros homens olhando para ela com o olhar que ela só queria do seu. Não, eu não gostava de homens me olhando seu idiota, tu continua distorcendo tudo o que eu falo! Frouxo é a palavra. É frouxo sim, frouxo é a denominação para um homem que deixa de tratar sua própria mulher satisfatoriamente. Não to cuspindo no prato que comi, to cuspindo no prato que não me comeu direito. Bem que eu gostava o quê, eu fingia se tu quer saber. Isso mesmo que tu escutou, fingia, o que não é difícil, visto que tu é tão egoísta que não consegue nem diferenciar um orgasmo falso de um verdadeiro. O que tu está insinuando com isso, porque não fala diretamente como um homem? Que absurdo, eu nunca te traí seu grosso! Não, eu nunca quis. Não sei porque, tu bem que merecia já que quer saber! E daí que eu queria sair com minhas amigas, porque isso significaria traição, seu asno? Como assim más influências? Tu lava essa boca antes de tocar no nome das minhas amigas. O que tem que a Lili falava de homem? Ah, e aqueles vagabundos bêbados dos teus amigos, nunca falavam de mulher de certo. Como assim coisa de homem? Mas tu é um machista imbecil mesmo! IMBECIL sim, quer que eu soletre? Como assim vai desligar? Escuta aqui, seu imbecil, tu vai ousar desligar na minha cara? Tá contando o quê? Um, dois, três o cacete! Seu estúpido, grosso, insensível, tu vai continuar sempre o mesmo!  É isso mesmo e nenhuma mulher em sã consciência vai te aturar, nenhuma vai agüentar nem mesmo o pouco tempo que eu agüentei, tu vai ver só. Tchau pra ti digo eu! E que bom que desligou na minha cara por que assim não vai escutar que eu ainda te amo e que estou morrendo de saudades, seu idiota.

* Da série Contos e Desencontros

A Moita e o Gozo



O presente texto foi gentilmente cedido pela Camila Noguez. Ela assina o fantástico Donnassolo Beschi, o qual eu, já na primeira visita, devorei inteiro mas saboreando cada palavra. Dona de uma escrita surpreendentemente inteligente, de um habilidade sarcástica digna de nota, e de uma sensibilidade capaz de capturar alguém chata, cricri e resistente como eu a ponto de fazer-me ler seu blógue inteiro, a autora modestamente o define como "um puxãozinho de letra na preguiça das palavras". Creio, todavia, que uma definição mais apropriada seria algo como um puxãozinho de alma na preguiça nas pessoas. Não o bastante, o texto a seguir é sem dúvidas uma das melhores e mais bem humoradas reflexões sobre o gozo psicanalítico que já li. E eu leio. Muito. Segue o feito:

"O gozo, no universo psicanalítico, não tem exatamente a ver com o cume do prazer, se relaciona muito mais à condição humana da punheta subjetiva. O gozo, nessa perspectiva, é portanto a vontade de repetição, não de diferenciação. Trata-se daquela excitação prévia por algo que quase sempre nos leva a uma enrascada; não a qualquer enrascada, mas a uma enrascada muito familiar. Por exemplo, aquele que está em uso problemático de um psicoativo e com repertório de vida reduzido em função disso, tem seu gozo localizado não no momento em que fuma, inala, ou se pica; atingindo assim, o orgasmo mental. 

Não. O gozo se localiza justamente na fissura, no momento em que se percebe não conseguir ficar sem o objeto de desejo, momento exato de um dar-se conta: "não, não posso fazer diferente, me rendo ao calmante, ainda que ele me faça mal; à torta de chocolate, ainda que eu tenha diabetes ou que me engorde." E então todo o processo que envolve a busca pelo objeto de desejo (a ida à farmácia, os olhos ansiosos pelo cardápio à procura pelo que "não se pode") compreende o gozo. 

Pois bem, o gozo e a moita se conversam. Moita, pra quem ainda não sabe, é o fenômeno de angústia diante de uma roubada amorosa, sentida logo após fazermos uma cagada (por isso moita: local de excelência da merda e, quanto mais merda se faz, mais difícil sairmos da moita, pois nos desesperamos e achamos que outra merda tapará a merda anterior e assim continuamos a fazer cagadas ininterruptamente). Note que a moita pode ser ocupada por somente uma pessoa da relação, muito difícil as duas pessoas estarem inseguras, ao mesmo tempo, uma com a outra, na trama amorosa. 

Por isso o negócio é simplesmente sair da moita, ela não é pra dois, é pra um. Saia e o outro a ocupará, quase que inevitavelmente, por experiência da humanidade. Pois então, o gozo é o prenúncio do sentimento-moita. Nós nos enamoramos por nós mesmos enamorados. Reside aí a dificuldade de abandonarmos relacionamentos obviamente inférteis. Não temos resistência exatamente em desistirmos do outro que sabemos não render, mas de nós mesmos nesse estado monalisístico que é o de sentir borboletas na barriga. 

A simples idéia de não termos alguém pra bater uma punheta subjetiva ou literal na hora de dormir já nos entristece, e aí damos início ao ciclo-gozo. Mesmo sabendo que não é uma boa, manuseamos o celular, escrevemos e reescrevemos mensagens dosadas, absurdas, ousadas, apagamos, digitamos até o ápice do gozo psicanalítico: os milésimos de segundo que antecedem a tecla "enviar". A moita, por sua vez, aflora vederjante e implacável ao visualizarmos "mensagem enviada". Em resumo, ao contrário do que nos induz a pensar o senso comum, gozo e moita nada tem a ver com sexo. O bom sexo. O sexo gostoso, quente, de entrega, de antes, de depois, de café, de sexo de novo, de cumplicidade, de confiança, de amor. Nada, nada a ver.."

Reminiscências

Não existe um único dia que eu não lembre. São coisas tão estupidamente simples, desconexas, como cheiro de chá de erva-doce, uma curva acentuada, o nascer do sol, uma maldita e minúscula flor na grama que ninguém mais parece reparar. Ando me sentindo uma caçadora de lembranças. Todos os dias cavo um pouco mais fundo, numa ânsia de encontrar algumas que possam ter se escondido, encobertado, quiçá camuflado.
   As que possuo estão se esgotando, não dão conta de matar a saudade crescente de ti, fortalecida e nutrida pela imposição da tua ausência. Encontrar lembranças foi a forma que encontrei de te ter e te levar comigo, veja só. Sei que de nada adianta, mas queria que soubesses que cada passo que dou, cada som que escuto, cada minúcia que percebo, sabor que sinto, grito que contenho, choro que tranco, emoção que broto, vem impregnados de um pedaço teu.
   Não quero que entenda mal. Eu consigo lidar com a tua falta. Não me impede de sorrir, de enxergar o mundo em seus detalhes, de viver como se deve. A saudade em si é um desconforto que eu gosto de carregar, o que seria de mim ter vivido tão em branco sem ter do que sentir saudade? Dói, mas não me mata, embora também não fortaleça. O que mata não é tua ausência da minha vida. É a tua ausência. É te olhar nos olhos e procurar qualquer rastro teu que seja e não encontrar. É ver um sorriso tão endurecido que remete a um choro cristalizado. É me perder no vácuo que faz teu silêncio asilado nessa fala compulsiva. O que mata mesmo é constatar o teu abandono de ti mesmo.

(Espera)nça

Nada me desgasta nem me sufoca tanto quanto ter esperança. Cada um desses soprinhos de esperança são como uma esgotamento contínuo cujo fim nunca vem, então creio que deva ser pior que morrer em si. Vai matando aos pouquinhos, e nada do que vem aos pouquinhos pode ser bom. 
Esperança vem de espera, e espera não sei de onde vem, mas deve estar bem perto de impotência total, das mãos atadas, do ter que assistir a cena de camarote e segurar o estômago entre os maxilares. Eu te espero. Talvez eu tenha perdido a hora, simples assim. Tu, que para mim tens a preciosidade de uma jóia, preferiu rolar feito pedra de construção, talvez da mesma que eu arquitetei e que alicerçou a primeira frase. Apesar disso tudo, dizem que é a última que morre, então certamente a minha deve morrer depois de ti. Mas... espera um pouco. E isso é vida? 
Se a condição de te ter ao meu lado é manter meus olhos fechados, meus ouvidos tapados, meu coração pendurado no soro, lamento. Prefiro te perder a concordar com tua morte. Enfim, sem fim, te deixo um suspiro.

Diário de Adolescente


A adolescente debruçada sobre a cama, estica o braço até o criado-mudo e lança mão de seu diário. Sente um ligeiro perfume de jasmim ao folhear as páginas cor-de-rosa cujas linhas guardam confissões que jamais dividira com alguém. Pensamentos soltos, de uma liberdade que o mundo fora delas jamais suportaria, símbolos que representam em letra tudo que já sentiu em sua breve vida púbere. Ao fundo, o som em alto volume remetia a uma juventude antecessora, esfumaçada pela trilha do musical Hair.

Inicia com a data, como de costume, e então escreve: “Dentre todas as afrontas, incluindo aqui a injúria e a ingratidão, nada é tão insuportável escutar quanto...” A frase é interrompida pela previsão do refrão da música, que adorava cantar alto. Enche os pulmões de ar pronta para desatar um audível leeeeeeeet the sunshine, quando seu pai invade o ambiente sem bater na porta, como sempre. Ela quase engasga ao engolir o ar de volta. “Filha!”, diz gritando, caso contrário não será ouvido. “Baixa essa coisa, tenho que falar contigo!”. Ela afunda a cabeça no travesseiro, imóvel. O pai toma frente e acaba com a música arrancando o fio da tomada, já que nunca achava o botão certo numa rapidez que pudesse impor alguma veracidade a sua, já tão frágil, figura de autoridade.

- Filha, temos que conversar! (diz em tom impositivo).
- Tenho escolha? (ela quis só pensar mas disse, sem levantar o rosto do travesseiro).
- Senta direito faz favor!
(“Faz favor”, ela pensa, essa corrupção de um “por favor” que virou ordem. Senta na cama, contrariada.)
- Quero falar sobre o seu futuro! Daqui a pouco você acaba o ensino médio, já pensou o que vai fazer no vestibular? Estive pensando, e acho que tu deves fazer algo relacionado à administração ou finanças para que possa vir trabalhar comigo.
- Bah pai, pera lá, não vou fazer o que tu quer, vou fazer o que eu quero!
- Ah claro, e o que tu quer então?
- Não sei ainda.
- Ah sim, claro que não sabe. Aliás, nem pensa nisso! Porque pra você o dinheiro magicamente aparece, assim, puf. Vive nesse mundo da lua, de discos, e teatro, bandas, aulas de dança, lambuzada de tinta, e sei lá o que mais que não é da órbita terrestre! Aliás que coisas são essas penduradas na tua parede?
- Olha aqui pai, eu não tenho culpa alguma se tu é um completo analfabeto de arte. Nem mesmo que não posso resolver as tuas frustrações em não ter feito as coisas do jeito que tu querias ter feito, isso não se resolverá através de mim. E são posters, pai.
- Arte! Sim arte! Um maluco de calças de coro que grita em cima de um palco é arte. É isso que você quer fazer da sua vida, arte? Vai viver de quê? Virar hippie e vender artesanto? Essa é tua idéia de vida artística? Escuta aqui moçinha, hoje tudo é muito fácil, a tua vida é toda muito fácil, mas existe uma coisa chamada fluxo natural das coisas. Tu já estas com 16 anos! E a vida funciona assim: tu vais sair da casa dos teus pais e vai ter a tua própria casa, carro, dinheiro. Pra isso tu vais estudar, trabalhar, te ralar, pra viver o resto da tua vida trabalhando e te ralando em algo que te dê uma vida digna! Chama FLUXO NATURAL DAS COISAS! Escutou bem? Eu posso escrever nessa tua parede aí que já virou mural de tantos rabiscos que tem!
- É uma bela visão de futuro, papai.
- Tu deixa de bancar a engraçadinha comigo! Na vida as coisas não são como tu queres! Agora até parece que são, o mundo é do jeito que tu quer, tudo é tão fácil! Mas vai te preparando, e muito, porque lá fora, lá fora o mundo é outro! Lá fora não tem mão na cabeça, não tem perdão, não tem dor de barriga, lá fora se come merda mesmo! E tu vai rapidinho perceber que nada é como tu quer que seja!

Ela calou. Alguns minutos de silêncio se estenderam, e seu pai se levantou em direção a porta, sinalizando que a conversa havia acabado. Antes que saísse do cômodo, satisfeito pela prestação de serviço paterno em dose de realidade discursiva, a adolescente diz:

- Bem. Se hoje a vida é como eu quero, talvez ela deixando de ser seja uma visão bastante otimista. Vejamos... Hoje eu vivo aqui, na tua casa, e tenho esse quarto aqui que é meu, todas essas coisas que gosto ao meu redor. Quando eu era pequena, eu também tinha tudo o que queria. Fui criada pela minha babá, já que tu e a mamãe estavam se esforçando muito para me dar uma vida bacana. Aí me apeguei muito a ela, mas a mamãe a mandou embora porque descobriu que tu andavas te engraçando com ela. Não suficiente, comeu a secretária, que foi quando a mamãe foi embora também, e não voltou mais. E ainda não o bastante, tu resolveu trazer a secretária pra morar aqui com a gente, e hoje ela também tem coisas bem legais e que ela gosta ao seu redor. Tem mais um caminhão de roupas, um armário cheio de perfumes, maquiagens e cremes caros, conhece a Europa, Estados Unidos, e vários hermanos latinos. Já comeu nos melhores restaurantes do planeta e já esteve hospedada em alguns dos melhores lugares do globo, fora que hoje dirige um carrão. Além do mais, tem planos promissores para o futuro, como ter um filho contigo, aquela máxima de pequenos herdeiros, grandes negócios. Então, levando em conta que não tinha casa própria pra morar, nem carro, nem cultura, nem porra alguma, e nem é tão mais velha do que eu, e hoje conquistou tudo isso, sabe papai, acho muito mais coerente com o teu discurso e exemplo, e para meu futuro seguir a trilha do sucesso, que eu curse secretariado. Então quem sabe, minha vida pode ser que nem tu dizes, comendo merda sem tempo pra dor de estomago, mais ainda assim, digna. Mas ainda assim papai, talvez, ao invés de trilhar esse caminho mais velho e mais real do que o mundo, eu vá preferir algum outro, desses assim que ficam bem longe destas órbitas terrestres.

O pai bateu a porta numa fúria que poderia tê-la arrancado da parede.

E a adolesceste, calmamente, recolocou o fio do som na tomada, deixou que a mesma música voltasse a tocar, debruçou-se novamente sobre a cama, e completou a frase que havia iniciado.

“... a verdade.”




O primeiro beijo



Eu desviei
Assim, como quem trilha em cima de bicho selvagem
Subitamente enguiça a rédia em direção contrária
Tentativa frustrada de domar um desejo sem cela, veja bem
Como se os desejos fossem domesticáveis

Mas bem enquanto eu adormecia
Naquele entreato entre sono e vigília
(E engraçado que foi perto do sonho,
onde todos os desejos se tornam possíveis)
Desperto pelo tato dos teus dedos contornando meus lábios
Tal como pintor que desliza os seus em uma tela branca
Que logo preencherá de cor

Eu nem mesmo abri meus olhos
Embora tenha descerrado em intensidade tal
Que vi tão claro
Inevitável, como a sucessão dos dias
Dos fluxos, dos ímpares naturais, das tempestades
Das estações

E sim, foi o mais bonito
Não apenas das nossas vidas
Mas de todos os primeiros beijos

No entanto,
E apesar da indissolubilidade do momento
Foi naquele segundo antecessor
Antes do tocar dos lábios
Com nossas auras entrelaçadas
Em meio a sinfonia que se compunha
Pela respiração partilhada e tão próxima
Que alguma marca se fez nessa alma minha
E imortalizou assim

De olhos bem fechados


No último 21 de dezembro, data em que fechei exatamente 27 verões de vida, antevendo o momento de encontro familiar planejei apresentar meu namorado aos familiares, compreendendo a necessidade de oficialização do meu estado civil, por mais idiota que isso soe. O que não previa, foi que neste mesmo dia conheceria um outro amor. Um grande amor, diga-se de passagem. Não o bastante, alguém oposto do que eu queria, ou que achava que queria, por categoria. Me foi apresentado pela minha tia, o vi pela primeira vez nos braços da minha prima. Era tampinha, manchado, tinha bigode, e sobrancelhas quase maiores que o bigode, era medroso, estava machucado, e miava ao invés de latir.

Pingado, seu nome em registro oficial, que com a intimidade virou Pin, Magic Pin, Pirlimpimpim, Tchuqui, Neni, Beibi, Peste, Hell’s Cat, Lambisgóio, Caçador de Moscas, Gato de Botas, Trampolim, Petit Gatô, Come-come, Gordo, Pelúcia, Sombra, Whiska’s Freak, Rom-rom-rom, Pula-pula, Gurizinho, dentre inúmeros outros apelidos denominativos de sua múltipla personalidade. Depois de tê-lo conhecido, finalmente entendi essa adoração das pessoas por gatos, já que cachorros sempre ocuparam meu pódio de desejo, cavalos de encantamento, pássaros de identificação, e demais animais de respeito e cuidado.

Os gatos me pareciam seres imprevisíveis demais, interesseiros, traiçoeiros. “Na verdade fostes que tu quem conhecestes os gatos errados”, foi o que meu namorado, já sabendo que teria de dividir meu coração, sentenciou. Meia verdade. Narciso nem sempre acha feio o que não é espelho. E eu também sou imprevisível, faço coisas por interesse (aliás, tudo que a gente faz tem algum interesse, fato), e sei ser bem traiçoeira quando quero, já que pertenço ao pior grupo do reino animal, o humano.

Aos poucos, fui me acostumando com suas peculiaridades. Achava graça de sua reação quando contrariado, ou quando eu ignorava seus apelos por mais comida,  subindo as escadas num miado grunido e resmungão e arranhando as paredes do andar de cima de puro ódio. Meu gato está entrando na gatorrescência, eu ria. Assim este “gurizinho” foi enchendo a minha casa, ao passo que se apropriava dela. De vida, de afeto, de existência.

Criou seus cantinhos preferidos, seus esconderijos secretos, fora adaptando-se à casa, concomitante ao processo de adaptação da casa às suas demandas felinas. O mesmo se deu dentro de mim. Ele foi se apropriando desse lugar dentro do peito, foi enchendo meu lado endurecido de ternura, meu lado sozinho de amparo, e essas manhãs bem cedinho em que o sol não vem de calor. Uma única fauna simbiótica, eu e o gato.

Acabei me acostumando com sua mania de me acordar antes das 6:00 da manhã miando na minha porta. Abria a porta e ele pulava na minha cama, enfiava o fucinho embaixo do meu queixo, me dava uma rabada na orelha, achava que meus cabelos espalhados eram brinquedos compridos super legais, e minha coberta um campo interessantíssimo de exploração. Uma algazarra, até que eu levantasse e fosse até a cozinha lhe dar ração,  enquanto resmungava que se tivesse ganhado um galo dormiria mais. 

(O resto deste texto foi escrito com esta trilha, e com uma bola de pelos entalando minha garganta.)

Verdade inteira é que esse bichano chamado Pingado me ensinou sobre o amor. Me ensinou sobre o óbvio, o que eu já sabia não sentindo, e o que se sabe sem sentir simplesmente não se sabe. O amor, em toda sua pluralidade, independe de condição, de lógica, de sensatez. Ora, “que pode uma criatura senão entre criaturas amar”, disse o Carlos. Pois é.

Eu tão bicho quanto ele, ele tão sentimental quanto eu. Cuidei de seus machucados, da sua falta, da sua condição de abandono, ele fez o mesmo por mim a seu modo. Falava com o gato o tempo todo. Sim, eu conversava com um gato. Por horas. Sobre tudo. Não sou tão louca se pensar na premissa de Lacan que diz que as pessoas nunca se entendem, dá na mesma. E ainda que ele falasse a língua dos homens, e eu falasse a língua dos anjos, nos comunicaríamos da mesma forma, porque a verdadeira comunicação sempre transcende o signo da linguagem.


Na ultima madrugada do dia 30 de junho eu tive o pesadelo que meu gatinho tinha subido no telhado do prédio durante a noite e caído de uma altura de 12 andares. E queria poder acordar dele.






In memoriam.

Modéstia à parte. Modéstia parte! Modéstia? Aparte...


“Eu acho que tu devia ganhar dinheiro com isso” foi o que ela me disse, onde a primeira pessoa seguida do verbo achar foi posto estrategicamente para que não parecesse uma sentença demasiado invasiva. Digo isso pelo tom afirmativo em que a frase foi dita, e porque eu também sempre começo com “eu acho” quando digo a alguém o que este alguém deveria fazer com a própria vida, ou com parte dela. Ela se referia à minha escrita.

“Mas eu acabei de dizer que o problema central na proliferação da literatura consiste no fato de ela, assim como tantas expressões artísticas, terem virado indústria”, respondi rindo e de forma sincera. “Sim, mas tal como na análise, o dinheiro também consiste no reconhecimento a algo que se dá de si”, retrucou minha amiga formanda em psicologia ao meu blá, blá, blá. Me saí com essa: “Mas eu tenho ganhos! Os ganhos não necessariamente passam pela moeda. Tenho libido investida ali, mas as vezes um ganho pode ser o mero esvaziamento da angústia, que a escrita pode proporcionar.” “O sexo na caneta”, ela riu. “É meu falo”, eu ri. Assunto encerrado.

Como se algum assunto, qualquer que fosse, se encerrasse dentro da mente de uma mulher. Encerrado nada. Pronto, ela conseguiu me plantar aquela coisa chatinha e redundante da dúvida, do “e se?” que eu levei pra casa. Sem modéstias cordiais, sou boa pra caral.... na argumentação. Sério, eu consigo convencer alguém sobre qualquer coisa quando quero, se duvidar me procure. Te convenço do contrário.

A questão que ficou ecoando em mim foi o porquê eu quis argumentar ali e convencer ela do contrário se depois fiquei com essa droga do “e se?” me atazanando. Porque eu não fiquei quieta ou apenas disse “é, talvez”. Pensei nisso quando me sentei no carro, ainda em São Leopoldo, rumo pra casa. No caminho me lembrei de um episódio com outra amiga, no vestiário da academia, quando disse que a barriga dela estava bonita. Ela me falou que não adiantava nada ter a barriga bonita já que ela tinha a bunda lotada de celulite, e culotes no quadril que não saíam nem se ela corresse uma maratona por dia e comesse como alguém que acabou de cortar fora 90% do estômago em uma gastroplastia, palavras dela.

Então me lembrei da minha implicância com todas as minhas amigas que são bonitas por dentro e fora e não conseguem dizer “obrigado” quando elogio algo sobre elas, sem me apontar um defeito em lente de aumento. Pensei no quanto implico com todos que tem idéias interessantes mas insistem em parafrasear filósofos ou escritores renomados como alterego, ilimitadamente, com medo de assumir a própria palavra e responsabilidade sobre ela. Me lembrei de como implico quando meu namorado insiste em ressaltar que não  é profissional quando alguém elogia suas fotos, mesmo que tenha curso, técnica, arte na veia e principalmente um olho cuja sensibilidade, técnica alguma proporciona. Aí refleti no quanto a própria implicância é sempre a identificação da gente com algo, e que não a toa tinha lembrado de tudo isso.

Eu já tinha chego em Novo Hamburgo quando voltei a frase inicial, à minha reação, ao "e se?" chatinho, e sobre o quanto aquilo foi mais um elogio que eu não consegui aceitar. E agora pergunto, porque a gente tende a se desculpar quando alguém reconhece algo bom sobre a gente, seja o que for? Me desculpe por ser bonita, me desculpe por ser inteligente, me desculpe por ter talentos, me desculpe por ter boas idéias, desculpe a minha criatividade, desculpe as minhas boas fotos, desculpe minha existência. Porque nos desculpamos? Por que nos sentimos culpados? Porque a gente afasta o olhar do que é bom na gente apontando o que não é, ou desviando pra outra coisa?

Seria talvez por que nos achamos tão grandes, tão fodões assim lá no íntimo que o elogio explicitaria nosso ego inflado que ninguém deveria ver? Medo da própria perversão? Seria porque no fundo tudo o que gente quer é ser amado, e ser amado é ser reconhecido? Seria por termos medo deste amor não ser incondicional, nos sendo insuportável receber doses homeopáticas de amor implicadas em reconhecimentos parciais? Ou nem tanto, do risco do amor em si? Seria nada disso, teríamos aprendido que boa educação, bons meninos e boas meninas devem fazer apologia à modéstia? Estou aberta a respostas, pra quem tiver. E se alguém tiver gostado do texto, já saiba de antemão que meu cabelo anda cheio de pontas duplas.



Filosofia e Arte!

Fui convidada pela Juliana Guterres para ministrar uma Oficina de Escrita Criativa no Encontro de Filosofia e Arte da Unisinos, e queria avisar sobre o evento para quem se interessar.

É um projeto super bacana, que objetiva promover o diálogo entre a Filosofia e Arte, assim como com outros meios de pesquisa acadêmica. Essa articulação da Arte com as demais ciências sempre foi algo que senti falta enquanto aluna da Unisinos e achei a idéia além de inovadora, extremamente rica.

Eu pretendo também trazer na oficina uma pincelada de Psicanálise baseada nas idéias freudianas discutidas em "Escritores Criativos e Devaneio" (1907), que acho um texto bárbaro. A idéia é que seja um momento interativo e não didático, também em fidelidade a própria noção pessoal que possuo deste signo da criatividade e respeitando a proposta da interlocução com a Filosofia.  

Por tabela, também estarei envolvida na Oficina de Fotografia deste mesmo evento, ministrada pelo meu digníssimo Rodrigo Brzozowski, que também foi convidado, e que provavelmente também participará de uma exposição de fotografia ao lado do Franscico Machado.

A Oficina de Escrita Criativa ocorrerá no dia 08/06/2010, das 17:00 as 19:00h e a Oficina de Fotografia no dia 09/06/2010, também das 17:00 as 19:00.

Aproveito ainda para agradecer a Juliana pelo convite, e parabenizar os demais membros da Comissão Organizadora do evento, Prof. Dr. Luiz Rohden, Giovanni Andersen Garcia, João Zaqueo Origuella Jr., Leonardo Marques Kussler e Tailan Adriel Frey, pela primorosa iniciativa.





O cárcere da mediocridade X A liberdade da criação*


Quem curte ficção ou literatura fantástica deve conhecer Edgar Allan Poe. Os Crimes da Rua Morgue? A Carta Roubada? Soa familiar? Não? Pra quem não conhece fica a sugestão. Mas não introduzi o autor para dar dicas literárias. Acontece que o cara, mesmo sendo considerado brilhante, foi avaliado como louco. É, pirado, lelé da cuca, fora da casinha. E certa vez alfinetou uma frase que já estampou minhas agendas e/ou diários de adolescência: "Resta saber se a loucura não representa, talvez, a forma mais elevada de inteligência." Bueno. Uma coisa posso afirmar a respeito do tipo: era criativo. Se duvidar de mim, leia-o.

Sob o viés psicológico, a criatividade não se limita a ter idéias bacanas ou a transformar tubos de tinta óleo em telas de pintura, mas inclui a capacidade de encontrar respostas incomuns frente a situações distintas (problemas, emblemas, esquemas, o que for). Em outras palavras, a sair de um caminho que já foi trilhado e dado como certo, óbvio, absoluto. Na vida real, pode ser por exemplo encontrar uma alternativa inusitada frente a um obstáculo no trabalho, que pode ser vista como absurda pelos demais colegas, algo que ninguém cogitaria. Na maioria das vezes tende a dar certo, experiência de caso.

Um erro medroso e perigoso essa coisa de seguir as convicções mundanas. O mesmo que fez, por exemplo, a huminadade crer que a Terra fosse plana, para após ter plena certeza de que fosse quadrada. Hoje em dia já existe até uma teoria louca de que ela pode ser oca, e não o globo formado de superfície, manto sólido e núcleo de metal fundido como a gente aprendeu na escola. A mesma teoria suspeita de que existe vida, outros povos e seres em seu interior. Loucura não? Talvez nem tanto.

Mas de volta ao Edgar Allan Poe. Ele não estava – e não continua – sozinho na idéia acerca da loucura. Bem antes dele, Platão usava um termo chamado “loucura divina” para designar a base de toda a criatividade. O filósofo atribuía uma ligação direta entre estas duas instâncias, talvez não tão “duas”: criatividade e loucura. Temos diversos exemplos de pessoas que marcaram fortemente a arte e/ou o meio intelectual que não pareciam bater muito bem da cuca, dentre eles: Picasso, Einstein, Tolstoi, Dali, Nietzsche, Miquelangelo, Maquiavel, BachD’Vinci, Vincent van Gogh, Utrillo, Modigliani, Mozart, e acho que quase todos os demais filósofos que me lembro, só para ilustrar.

Estes e outros tantos sublimes personagens apresentavam – em maior ou menor grau – variações extremas de humor, dependência de álcool ou drogas, distúrbios de comportamento, compulsões, manias, fixações, alucinações, comportamento anti-social, dentre outras fortes perturbações psíquicas, e foram considerados loucos. Mas por quem? Sabe como é, em terra de cegos quem tem um olho é pirado.

O que ocorre dentro da mente criativa é que o intelecto não se fixa numa única busca de solução, estatisticamente comprovada e cientificamente fundamentada, mas ousa procurar – e consegue encontar – novos caminhos. O pensamento tem uma fluência muito mais livre do que ocorre nas mentes amendrontadas pelas regras sociais, noções previas de certo e errado, moral religiosa, livros de história, ou fidelidade irracional ao nosso novo pai-senhor-todo-poderoso, a ciência (jogando em alto nível hein, pras massas na maioria das vezes é a mídia mesmo).  Mentes criativas conseguem refazer, resignificar, encontrar, criar de forma independente. Um talento. 

 Na oposição entre o que é convencional e não-convencional, tido como evidente ou fora de razão, certo ou incerto, a criatividade sempre brota daquilo que ultrapassa o obviedade, mesmo que precise passar pelos primeiros para poder nascer. Posto de forma mais sucinta, mentes criativas aventuram-se indo longe demais com suas idéias e seus pensamentos, as vezes mesmo ultrapassando as fronteiras do inteligível. Mas inteligível para quem?

Ora, já é um clichê que a inteligência e o sofrimento psíquico andam intimamente atrelados. Seria uma piada pensar que encontraríamos um gênio em um desfile de carnaval ou dançando em cima de um quejinho, feliz da vida, achando que se esta aqui a passeio, vivendo na superficialidade de si. Ser é arriscar-se. Sentir é arriscar-se. Criar é arriscar-se. Não sei se a terra é oca, mas sei que muitas cabeças o são. Quando estão cheias, são postas em hospícios. É o preço. No pain, no brain.


*Homenagem ao movimento anti-manicomial, comemorado dia 18 de maio.

Por um mundo menos alienado, por uma loucura mais sã. 

Por toda minha vida



Cena 1

- Mmmm…
- Marcela?
- Não…
- Mmmm...

- Do que vocês estão brincando?
- Não estamos. Estamos pensando no nome da sua irmãzinha que esta dentro da barriga da sua mãe.
- Porque ficam falando mmmmm?
- Porque queríamos um nome que começasse com “M”.
- O que é “M”?
- Uma letra, a mesma que começa teu nome. Faz esse som, mmmm.
- Mmmmm. Manuela.
- Isso.
- Mariana, mãe. Também faz mmmmm.


Cena 2


- Amanha vai nascer tua irmãzinha.
- O que é nascer pai?
- Bem, nascer é quando a gente vem ao mundo. Amanhã ela vai sair da barriga da tua mãe, e tu vais poder conhecer ela.
- Como que ela vai sair de lá?
- O médico vai tirar ela de lá.
- Como?
- Ele abre a barriga da tua mamãe, tira ela de lá, e depois fecha de novo.
- Minha mãe vai morrer pai?
- (Risos) Não querida. Ela nem vai sentir nada. Ele dão um remedinho que faz não sentir nada de dor. Olha, agora tu vais ser a irmã mais velha. Vai ter que ajudar a cuidar dela, ensinar novas coisas que tu já sabes, ela vai ser bem pequeninha.
- Que nem um passarinho?
- Não filha. (Risos) Maior que um passarinho. Mas vai precisar de cuidado, então tu tens que ajudar a cuidar dela. Comprei esse anel para dar de presente pra tua mãe.
- Mas não é aniversario da mamãe.
- Não é, mas é da tua irmãzinha. Amanhã vai ser o dia que a gente vai comemorar depois como aniversário.
- Posso eu entregar, pai?
- Claro que pode.

Cena 3

- Esta é sua irmã, vem conhecer ela.
- Ela é careca.
- Sim, as pessoas nascem assim. A maioria, tu nasceu com cabelo.
- Ela parece uma das minhas bonecas.
- Parece, mas ela é de verdade, tu tem que ter cuidado com ela.
- Eu posso pegar ela?
- Tu ainda é muito pequena pra pegar ela, e ela acabou de nascer, ela é muito frágil querida.
- Mas pai...
- Olha ela vai abrir os olhinhos, vem ver.
- Olha filha, ela está olhando pra ti!
....
-Oi Mariana. Eu sou a Manuela. Sou tua irmã mais velha. Isto quer dizer que vou cuidar de ti e te ensinar coisas que eu já sei.



Não importa o que tu digas, nem mesmo que não gosta de fazer aniversário. Eu sempre vou ter motivos para comemorar esta data. Te amei desde o primeiro momento em que te vi, e seguirei te amando enquanto existir. Se houverem outras vidas depois dessa, te escolheria 1000 vezes para  voltar ao meu lado. Se esta vida é tudo que há, eu tenho mesmo muita sorte. 
Feliz aniversário, Mariana.

Con(sumo)






Consumimos além da conta, renda, ou juízo. Roupas desnecessárias, carros que só faltam andar em cima d’agua, eletrônicos dos mais diversos tipos, cremes em quantidade tal que hidratariam a pele dos habitantes de um estado. Bebemos aquela água suja do capitalismo com nome de droga. Nossos sorrisos reluzentes e petrificados nas colunas sociais, álbuns de formatura e eventos festivos remetem aqueles do creme-dental, fotografias que um dia nos farão lembrar do quanto fingimos bem a felicidade.


Você é um idiota completo se não tiver o tênis dos campeões e acessórios inúteis com estampa oncinha que custaram mais do que a renda mensal de algumas famílias. Falando nisso, nossos parentes não são famílias se não comerem a margarina lá no café-da-manha, hoje livre de gordura trans para não infartamos do miocárdio, mesmo que o peito continue sufocando. Nossas necessidades desnecessárias se criam conforme a tecnologia evolui, nossas ações dependem da oferta, quem financia é o ecossistema que acreditamos ter de prover nossa estupidez como um seio inesgotável.

Nossas crianças colecionam prateleiras de brinquedos improfícuos e adulterdos, nossos jovens entopem-se de objetos e narcóticos, nossos adultos adquirem tudo aquilo que a alma não consegue comprar. Tem que ter, as revistas ordenam. Vai ficar de fora? Já disse “alô” hoje pra quem você ama? Só é possível pelo celular. Aliás, compre um daqueles que manda fotos para que seu amado se lembre da sua fisionomia. E não esqueça o sorriso escovado, tão reluzente quanto aquele espelho novo, que poderia estar pendurado na altura da cintura, visto que não se enxerga nada além do próprio umbigo.

Consumimos veículos que não nos levam a lugar algum, roupas que nos enfeiam porque alguma bicha louca ditou que é bacana, eletrônicos que nos robotizam e separam cada vez mais, cama sem aconchego, mesa sem afeto, banho sem tranqüilidade. Nossas belas casas estão longe de se tornarem lares. Nossos animais de raça, pet-shopados, escovados, perfumados e de unhas feitas fazem parte de nosso visual ultra-fashion. Medimos as possibilidades de uma pessoa pelo quanto ela pode pagar.

Casamos por dinheiro. Levantamos da cama por dinheiro. Trazemos gente ao mundo por dinheiro. Temos coragem de dizer que temos medo da violência e dos marginais, sem cogitar a assustadora violência que é se empurrar alguém para fora da margem social. Seguimos brincando de invisível quando algum pirralho sujo e morto de fome vem bater na porta do nosso vidro na sinaleira, ou parodiando de heróis achando que fizemos a boa ação do dia ao puxarmos 2 pilas do bolso.

Compramos presentes no dia das mães, pais, crianças, e aniversários, cujos preços delimitam o calibre da afabilidade e dos votos. Transformamos carboidratos em afeto, e entupimos nosso corpo com as mais diversas porcarias para desviarmos dessa nossa verdadeira imundice interna. Consumimos uns aos outros e a nós mesmos, amores descartáveis, sexo seguro sem o menor risco de afetividade, e voltamos pra casa cada vez mais abarrotados por fora e esvaziados por dentro. Con... sumimos...

Entre rótulos e conteúdos

                           Fotografia: Rodrigo Brzozowski 


Sempre tive grande apreço por auto-retratos, sejam estes concretizados em qualquer forma de arte, na fotografia, na pintura, na escrita autobiográfica, dentre outros. Retratar-se nada mais é do que fazer um recorte de si. Seja este pela forma como quem o faz se percebe, seja como ele gostaria de ser percebido, seja como compreende o que os outros percebem dele. Repeti tanto essa palavra – perceber – numa catatonia intencional.

Porque percepções são circulares, maleáveis, sugestionáveis, pretensiosas. Na maioria das vezes aquilo que se torna evidente, claro como água, ou facilmente identificável é o extremo oposto da verdade. Existe uma linha muito tênue na verdadeira intenção do auto-retrato. Isso caso tenha alguma, visto que vivemos na era do vazio e a falta de sentido nos permeia cada vez mais, como Lipovestky diria bem melhor que eu. Ou seja, alguém pode se retratar puramente por vaidade. Mas posta a ressalva, a intenção implícita no ato de retratar-se pode conter tanto uma expressão fidedigna de uma parte de si, quanto servir justamente para desviar o olhar de quem vê para o que não pode ser (ou não se quer) que seja visto.

Mario de Andrade acertadamente disse que pessoas não debatem conteúdos, apenas rótulos. Essa é uma frase curta de imensa sabedoria, porém pretendo ir um pouco além dela. Afinal, qual a diferença entre o conteúdo e rótulo? Alguém certamente vai pensar, “ora, a diferença é evidente, o conteúdo é o que a pessoa é de fato, e o rótulo é quem ela se mostra ser”.

Mas se partimos do pressuposto de que o ser humano se constitui, se subjetiva e forma sua própria identidade através da interação, a coisa complica um pouco nessa “evidência”. Partindo desta proposição, precisaríamos mesmo dos olhares e até das expectativas de – pelo menos – um outro, para que pudéssemos de fato ser. Mas ser o que?

Eu acho bem gozado quando vejo alguém se definindo. Inclusive antes de escrever este texto dei uma olhada em perfis aleatórios de orkut, e vai, sei que não é lugar pra pesquisa de campo, mas confesso que faço porque me divirto. Baita pergunta essa do orkut, “quem sou eu”. Tem gente que tenta se definir pelo que gosta: “Gosto de animaizinhos, de florzinhas, do papai e da mamãe” (tirando o papai e mamãe – sem ironia – o resto é verídico, e não era de uma criança). O melhor é quando alguém se arrisca seriamente a responder, do tipo, “Sou uma pessoa calma, tranqüila...”, ou “sou muito alto-astral, de bem com a vida, bem zen...”, etc.

Será que as pessoas não se dão a mais remota conta da superficialidade em que escolhem viver? Será que nos falta tanta propriocepção para além da cinestesia? Quem minimamente se conhece, já se deu conta que a questão é bem maior e vai muito além de qualquer conceito, adjetivo, substantivo, diminutivo ou diabo que o parta.

Rótulos existem não apenas porque quase ninguém nos vê (fato), mas porque a gente mesmo cria para poder se enxergar. Somos produto de nossa própria crença. E somos tantos que somos um para cada pessoa, e cada pessoa é uma (ou varias) para nós, o que multiplicaria a população do planeta por ela mesma inúmeras vezes em termos de rótulos, matematicamente falando. 

E o conteúdo, onde fica? Talvez não fique, talvez o conteúdo seja esponjoso, mutante, camaleônico, infinito como o próprio rótulo. Se assim não fosse, se nosso “conteúdo” fosse imutável, como poderíamos evoluir? De que vale mesmo um diagnostico psíquico? Talvez tenhamos todas as possibilidades dentro de nós mesmos. Talvez nos caiba o intransponível encargo de descobri-las.

Declaração Oficial


Até agora não sei explicar direito como foi que você conseguiu entrar, só sei que nunca pediu licença.

Hemisférica em exageros como sou, só conseguiria pensar em duas formas de fazê-lo, arrombando a porta impetuosamente ou ameaçando greve de fome sem nem tocá-la, caso não abrisse para mim você mesmo.

Mas parece que nem tanto nem tão pouco, assim sem que eu percebesse mas me fazendo perceber. Pelas frestas, pétala por pétala, grão por grão ou caco por caco.

Não sei bem como, mas foi pelo solo, lá na base até então frágil, dentro no miolo. Sem expectativa de ganho, de gozo, de resultado, mas apenas porque, tal como a primavera abre toda e qualquer flor até então cerrada, não conseguia evitar fazê-lo.

Nunca aceitei te entregar raspas e restos e fiz um bom uso dessa argumentação, mas nenhuma alegação perfeitamente racional pareceu ter funcionado contigo, o que devo confessar, tenha me dado certa raiva por me retirar a satisfação pessoal de sempre ter sido boa nisso.

Devidamente irritante também tua mania ortográfica de sempre acrescentar mais dois pontos a cada término de frase, e deixá-los ali fazendo companhia em agrupados de reticências a cada ponto final que eu precipitadamente rabiscava, mudando completamente o rumo da minha história...

Também conseguiu acabar com certos conceitos acerca de esperança, confiança, amor, e outros tantos, contrariando não apenas a mim, mas ao meu corriqueiro escape nietzschiano e teoricamente conveniente.

O que sei é que conseguiu não me engolir, tal como era até então a minha experiência no caso, e modificado radicalmente minha visão até então tida como total (e hoje como parcial) da realidade das coisas, e dos relacionamentos humanos.

Além do que, delimitastes bem a distância entre sinônimos e antônimos extra-conceituais, fazendo com que tua ausência não me furasse nem me cortasse, visto que tu simplesmente não sai.

E tu nunca levou a sério minha tentativa ridiculamente ensaiada de tentar escapar, alegando direitos de consumidor para todo sim escancarado em cada não que eu tentei te vender.

Chegou um ponto que respirar longe de ti não existe, independente da tua presença física. E que cada inspiração tua deságua na minha própria, dentro de todos os sentidos possíveis de se extrair desta frase.

O mais surpreendente foi eu ter me surpreendido tanto, e o pleonasmo aqui se faz necessário. Com especial destaque a minha necessidade orgânica de sumiços que nunca te abalaram muito, sem contar tua capacidade admirável de conseguir se tornar porto de chegada para cada barco meu que insistia em partir

Seguro a ponto de rescindir o sentido dessa minha necessidade amedrontada de desaparecer, ou do meu jeito desconexo de pedir ajuda não pedindo, de gostar afastando, de falar me calando, ou de me esconder me mostrando.

Não me resta outra escolha senão declarar que se é para o bem da alma e felicidade geral desse coração, eu fico. Quem sabe, pra sempre.