
Rosa-dos-Ventos

Que inferno!

Por crédito cristão ou mesmo dentro da tradição mitológica, herdamos uma imagem do inferno como um espaço destinado às almas perdidas, repleto de fornalhas, instrumentos de tortura com pano de fundo de fogo eterno tal como Dante ilustrara na Divina Comédia, dotada de um contorno medieval com seus julgamentos e penitências. O inferno sempre esteve associado ao sofrimento, tormentos e horror. E o inferno existe.
Sou bem partidária do inferno sartreano, até por uma questão estética. Para ele, a decoração seria estilo Segundo Império, nada de janelas, espelhos, nem passagens, as fornalhas trocadas por uma lareira e as criaturas demoníacas por estatuas de bronze, além de ter canapés. Pelo menos é assim que ele o descreve na peça “Entre Quatro Paredes.” Melhorzinho né? A única concordância é a temperatura ambiente. O inferno é quente. Mais quente – me parece – que o Brasil. Ah sim, a parte do horror também encontra-se em comum acordo.
Proponho tratar aqui da máxima sartreana, que seria a idéia central da peça mencionada. Eternizada por aquela frase clássica, já exaustivamente repetida e erroneamente empregada: “o inferno são os outros”. A frase foi mal-compreendida e mal utilizada por muitos. Isto se explica (ironicamente) pela nossa própria concepção de outros. Temos dois tipos de outros.
Temos os outros imaginários, os mesmos outros que minha mãe jurava que viviam me condenando se eu não portasse como uma mocinha em público. Esses outros que pensavam e pensavam sempre mal. “O que os outros vão pensar?” Crianças costumam ter medo de bicho papão, eu tinha medo dos tais outros, deviam ser bem malvados esses outros. O problema é que as crianças crescem, deixam de acreditar em bicho papão, papai Noel e coelhinho da Páscoa, mas grande parte dos adultos continuam acreditando nos tais outros.
Quantas coisas que tem vontade de fazer não abrem mão por causa deles, quantas amarras colocam no próprio no corpo por causa deles, quanto desconforto elas sentem em público por causa deles, quantas horas na frente do espelho elas passam para que sua aparência, roupas e acessórios sejam aceitas e julgadas apropriadas por eles. Quanta grana elas não gastam com carros monstruosos, para mostrar para os outros que podem. Mas podem o quê? Afinal de contas, quem são eles, e onde estão eles? Estes outros não podem ser as pessoas em geral, porque elas ou estão com medo dos mesmos outros (e por isso não estão nem aí pra ti), ou estão pouco se lixando para os tais outros e vivendo sua vida como querem (e portanto ainda mais, nem aí pra ti).
Temos também os outros reais, estes sim com quem nos relacionamos, interagimos e compartilhamos (ou que por qualquer motivo que seja, resolvemos nada partilhar). Mesmo assim, estes outros são fundamentais para nossa própria noção de eu. Primeiro porque o ser humano é o único bicho que nasce completamente dependente de outros. Um cavalinho nasce e blof! Já é lançando ao chão. Mal caiu já tenta se erguer nas frágeis perninhas, mas fica de pé, encontra a teta da égua sozinho, e mama. Nós não, se ao nascermos, formos jogados e deixados no chão, morremos. Ou na queda ou na inércia. E segundo porque nos constituímos na relação. Sartre já dizia:
“Quando pensamos em nós, quando buscamos nos conhecer, usamos, no fundo, os conhecimentos que os outros já produziram sobre nós. Nós nos julgamos com os meios que os outros nos deram para nos julgar. O que quer que eu diga sobre mim, sempre o julgamento do outro vive em meu íntimo.”
Quem duvida, que faça um retrocesso mental. Vai se dar conta do quanto repete (sobre si mesmo) o que seus pais diziam. Ou tios, avós, irmãos ou sei lá quem lhes criou.
Tem ainda uma terceira consideração. Os outros – reais ou imaginários – são indivisíveis. Isto porque imaginamos o outro real, e vivemos como real os outros imaginários. Uma confusão só. Ai que parece estar o inferno né? Chegou a ter vontade de fazer a malinha e ir morar numa ilha? Espere só mais alguns parágrafos. Nem Sartre em sua vasta sabedoria defendeu o homem por si só, e nem eu no meu escasso conhecimento pretendo fazê-lo.
O que ele constatava era a existência de uma quantidade imensa de gente no mundo que fica voluntariamente no inferno, ou porque depende muito do julgamento do outro, ou porque procura reconhecimento no outro, ou ainda porque odeia demais os outros. Sim, se alguém desperdiça energia em ódio e vingança, por exemplo, fica na total dependência no outro. Ao voltar-se demais ao objeto de seu ódio, medo, ou destruição não vive nunca a própria vida.
Isto é o inferno, uma sala fechada que as pessoas entram voluntariamente. E ali permanecem. Poderíamos resumir o inferno de Sartre no tipo de relação que estabelecemos com os outros, e a condição de permanência no inferno na repetição continua do mesmo padrão de relação. Tem alguém que te odeia, ou que – com o perdão da redundância – tenta te infernizar a vida? Pois deixe-o queimar sozinho no próprio inferno, e vá cuidar do seu céu. Não desperdice vôo, não desperdice libido, não desperdice existência, biografia, ou coração. Qualquer que seja o círculo do inferno que se possa encontrar, sempre existirá a possibilidade de quebrá-lo.
Enquanto você dormia

Eu fui até a aurora, para procurar o melhor nascer do sol. Eu encantei o vento para que o tornado virasse brisa em primeiro sopro, e eu busquei o fôlego para soprar para longe todo o teu tormento. Eu criei o tempo anti-horário só para te tirar o peso da pressa, eu eternizei. Enquanto você dormia, meu bem.
Eu peguei pela mão e colhi as fadas, as luas e os orvalhos para que existissem, eu brotei a vida pelos galhos secos, eu fiz nascer. Eu velei teus olhos cerrados e tuas dúvidas, eu vigiei. Não te deixei só em nenhum instante, por baixo das tuas cobertas eu te alcancei nos meus abraços. Passei noites de zelo em claro, para beber na tua boca as tuas lágrimas secas. Queria tanto que dormisses em paz. Contornei teu corpo com a delicadeza que um pintor traça os fios imaginários antes do toque do pincel na tela. Enquanto você dormia.
Mas teu sonho só tinha espaço para um, e eu quis o sonho compartilhado. Ao pesadelo, por entre as paredes do teu quarto, olhei meus pedaços pendurados. Pelos teus armários e gavetas, pelo chão espalhados e revirados, partes minhas. Peguei o que consegui de mim na minha urgência por sair, os que não encontrei talvez aí ainda estejam.
Saí do teu quarto meu bem, enquanto você ainda dormia. Talvez tenha fechado a porta com força, mas as portas que fecho se cerram na explosão, não ficam entreabertas circundando entre ir e vir. Acordastes com cama vazia e no momento tardio. Agora é minha vez de sonhar e o sonho já é outro sonho.
Mulheres fálicas

Refiro-me às mulheres fálicas. Essas mulheres, que assustam os homens asfixiados e confusos da pós-modernidade. Toda a mulher que nasce hoje, já nasce com uma autorização ao masculino. Já se forma em uma sociedade que lhes garante não apenas os direitos, mas os deveres. Ao voto, ao estudo, à voz-ativa, aos cargos de poder, tomada de decisões, ao volante, ao divórcio, ao espermatozóide anônimo, a discórdia, ao sexo. Paradoxalmente, não nos livramos de nossos “deveres antigos”, de sermos amáveis, simpáticas, sorridentes, bonitas, prendadas, boas parceiras e boas mães, e quase que invariavelmente, o menos fálicas possíveis.
Temos na história, algumas representações de mulheres fálicas que viraram ícones. São poucas, tão poucas que viraram ícones. Na política, na música, nos negócios, na literatura, na psicanálise, nos esportes, lá estão elas. Conheço de perto algumas. Dia desses me encontrei com uma delas, que me relatava alguns insucessos em suas aspirações amorosas, ao que eu lhe apontei que ela era tão fálica que devia assustar os homens, quem sabe se fosse um pouco menos.
Ela me rebate sem nem pensar para responder, “eles que aprendam a lidar com a minha verdade”. Decidida. “Sou mesmo tão fálica que comprei meu próprio pênis!”, ela me lança, referindo-se ao vibrador de coelhinho cor-de-rosa que trouxe de viagem. Mulheres fálicas não são passivas, são ativas. Mulheres fálicas penetram, adentram, perfuram e gozam onde bem entendem.
Mulheres fálicas são fortes, funcionais, elas buscam, catam, procuram, tem a mente voltada para o movimento, não se contentam com o lugar de trás. Ficam num impasse, porque também não querem andar na frente abrindo a trilha sozinhas, querem um homem igualmente ou mais fálico do que elas próprias, e estes também estão em falta. Quando existem são aqueles machões rusticamente trovejantes e grosseiros, que uma mulher que é fálica mesmo jamais vai se atrair, porque para elas inteligência e sensibilidade também são afrodisíacos, uma coisa não anula a outra. Complexo.
O que os homens ainda não descobriram, é que atrás de toda leoa feroz existe uma gatinha que pode ronronar, que vai defender a prole com unhas e dentes, e que vai lutar até a morte pelos próprios princípios. Ela é para fora, e portanto muito mais confiável, visível, fiel consigo mesma, fiel com sua própria verdade. Voltando a minha torrencial amiga, ela consegue transitar nesse pólo sem ferir. Fala na minha cara o que não gosta, onde foi que eu errei, e o que espera de mim. Se mostra, se lança, vive na intensidade dos sentidos, me encanta de uma forma que tenho um orgulho gaudério de tê-la como amiga. Não entendo como um homem possa temer isso, e não entendo como um homem não possa se apaixonar por isso, mas os homens são estranhos.
Talvez não apenas os homens não estejam preparados para elas. Talvez o mundo não esteja. Mas ser fálica é isso mesmo, é estar frente ao seu próprio tempo. Concluo portanto, me curvando aqui, em reverência à audácia, coragem, valor e existência de todas estas mulheres.
Dark side of the rainbow
Existe sempre um Universo Oculto, no dentro, no fora e no entorno.
O assunto me fascina, desde sempre. Em tempos remotos podia sentir tal existência apenas no instinto, farejando o vento, em algum resquício que ele leva e trás. Hoje dentro do meu pequeno conhecimento, sei que temos e estamos dentro de universos infindos e paralelos.
Sendo a maior descoberta freudiana, o inconsciente consiste (de forma muito reducionista) em um complexo psíquico de caráter insondável e obscuro, uma fonte misteriosa, cujas gotículas nos viriam a superfície (ao consciente). É dele que emergiriam as paixões, as pulsões, o medo, a criação, a própria vida e morte.
Desde os tempos modernos, depois da Ciência virar nosso Deus, fomos tomados por uma necessidade de linearidade causal. Nosso raciocínio, organização e compreensão de mundo se organizam em torno desta exigência de conservação linear. Com isso evoluímos bastante na matéria, na tecnologia e em alguns outros departamentos, mas estancamos algo de primitivo, algo de instintivo, algum sentido sexto ou crescente.
Atualmente, temos na Física Quântica um contraponto, que começa a questionar a existência de algo fora daquilo que se intitula como realidade, algo que fuja do nosso construto de tempo, de nossa experiência subjetiva de "flecha do tempo" apontada para frente. Necessidade de lógica, de ver pra crer, de tocar para sentir, de ter para ser.
Quem sabe se quebrado isto, nós humanos não poderíamos passar a viver de forma mais integrada, sem tanto determinismo e com mais criação e percepção, com vias mais abertas de acesso a outros tempos, outros ventos e outros espaços, e pudéssemos enxergar melhor sobre a neblina que nos toma.
É por essas e outras que também me fascinam as mentes artísticas, as crianças e mesmo os instintos animais, os atos-falhos e os sonhos, e toda construção que se dá a partir daí. Me atraem as divagações, e os seres humanos que arriscam sair da lógica formal para rodopiarem em algo não lógico, mas de completo sentido, sem medo da desintegração. Enquanto não saímos deste abismo, vou continuar me esforçando para não estancar aquilo que se abre em mim e para mim, e que eu pesco sem querer querendo.
Dentro dos olhos

Ali onde algo parecia encantar
Surgistes dentro de uma tela vazia
Expressões congeladas de ser
Te vi através da tua íris e arcos
E flechas que apurei desviar
Em vão, tuas cores são claras
Entram pelas frestas como raios de sol
Enxerguei-te no escuro da noite
Ali por onde caem estrelas
Sem conseguir fixar teus olhos
Medo de me perder no final da íris
Teria mesmo o fim e ouro?
Não quis ver em inútil reluta
Cedendo fechei meus olhos
Em tributo, para poder lhe enxergar
Existem mundos que só abrem no fechar
Dos olhos
Já te carrego dentro do olhar
E te encontro nas cores que vejo
Estás dentro da minha pupila dilatada
Dentro da minha pálpebra fechada
Na voz que lhe entrego ao teu fechar
De olhos e nesses teus olhares abertos
Que vão me abrindo sem saber
Bulimia Emocional

Entre nós (conversa de menina)

Ao dirigir até lá passo por lugares mais antigos da cidade de Novo Hamburgo, a mesma em que nasci e me criei, que me trazem uma saudade melancólica de algo que certamente nunca vivi, mas carrego em mim. Tudo fazia cenário para minha convicção de que iria chegar em casa no alto de minha própria inspiração, além do quê provavelmente teria que parar a conversa para escrever alguns versos soltos como costumo fazer quando me encontro com ela, o que evoca nela um sorriso maternal como quem assiste uma criança fazendo rabiscos rasurados jurando que é uma frase. Ela acha bonitinho e esse olhar dela acalma uma parte dessa minha alma inquieta.
Em parte eu estava certa. Mas esta amiga me vem com uma analogia que transformou esse encontro no diálogo do mês, o qual tive que negociar bastante para transcrever aqui. Queria creditar mas a condição de publicação foi permanecer no anonimato, mesmo com minha argumentação de que a tese poderia entrar para o currículo dela. Nada feito.
A pauta girava em torno do quanto as pessoas, já tão acostumadas com a selva de pedra que chamamos de mundo e com os seres cada vez menos humanos que uma lata de Coca-Cola, ao encontrarem alguém cuja existência coloque em xeque a freqüente constatação de que ninguém mais presta, se afobam ao ponto colocar tudo a perder. Por tanto querer, acabam ficando sem.
Conversamos a respeito do quanto as vezes se força uma intimidade que não existe, se conjuga o nós enquanto ainda são apenas eu e tu, se apressa as coisas numa ânsia de querer. Essas coisas tão comuns que vemos, vivemos e fazemos. Eis que ela me lança:
- Eu acho que isso ai é que nem clitóris.
- Hein?
- Clitóris guria. Vulgo grelinho, vulgo sininho.
- Sim, estou familiarizada com a nomenclatura anatômica popular. O que não entendi foi a conexão.
- Simples. Em primeiro lugar, tocar no clitóris sem que se esteja excitada, é broxante. Ou seja, o ato primário deve proceder da constatação de recíproca.
(Me interessei)
- Ok, prossiga...
- Pois bem, depois de constatada a recíprocidade, qualquer movimento brusco pode te levar ao antônimo do prazer. No caso, até mesmo à repulsa.
- Sim, clitóris é que nem olho.
- Exato. Posto isso, mesmo que se comece tão de leve quase ao ponto de nem encostar, se o tempo de perdurar nesta etapa for insuficiente, lá se vai seu prazer todo ralo a baixo.
- Eu posso anotar isso?
- Nem pensar.
(Anotei mesmo assim, desta vez sob protestos de que eu estava proibida de publicar algo a respeito. Nada de olhar maternal.)
- Foco, prossiga.
- Se o rapaz partir para um movimento mais ritmado antes da hora, ou seja, se ele precipitar a coisa, não vai dar certo. Qualquer coisa que apresse o tempo, sairá pela culatra. Da mesma forma, se ele nunca tomar ritmo, e permanecer no camera lenta, tu nunca vai chegar lá, saca?
- Isso deveria entrar para o currículo básico do ensino fundamental e passar a ser ensinado na escola.
- Eu acho que o ponto chave da questão é não se precipitar, a idealização faz isso. Idealiza-se a partir do que se mostra em primeiro plano, um ser que talvez encaixe todos os pré-requisitos que se espera de alguém para dividir o guarda-roupas. No caso do sexo, a diferença de gêneros impõem ritmos diferentes, e que mesmo assim mudam de mulher para mulher, sendo que ele tem que perceber qual é o teu, tem que estar conectado contigo pra perceber isso
- Eu entendo, mas veja bem. Tem tantas gurias, mas tantas gurias que fingem que isso confunde. Ainda na analogia, visto que tem tantas gurias tão desesperadas para entrar numa relação que só faltam escrever na testa “me atropela, pode vir”, e fingem o gozo.
- Sim, fato. Mas mesmo assim, um homem tem que saber e sem necessariamente a mulher falar.
- Um homem tem que ler pensamentos também?
- Não precisa, é só ter semancol. A regra é sempre a mesma, o único caso que contraria a musiquinha lá que tu tanto gosta do Chico. No caso, devagar é que se vai longe.
- E se o cara dançar conforme a música? Esta música, no caso.
- Ai ou tu finge ou tu desce! E ouça um “bom conselho”: melhor descer...