A Moita e o Gozo



O presente texto foi gentilmente cedido pela Camila Noguez. Ela assina o fantástico Donnassolo Beschi, o qual eu, já na primeira visita, devorei inteiro mas saboreando cada palavra. Dona de uma escrita surpreendentemente inteligente, de um habilidade sarcástica digna de nota, e de uma sensibilidade capaz de capturar alguém chata, cricri e resistente como eu a ponto de fazer-me ler seu blógue inteiro, a autora modestamente o define como "um puxãozinho de letra na preguiça das palavras". Creio, todavia, que uma definição mais apropriada seria algo como um puxãozinho de alma na preguiça nas pessoas. Não o bastante, o texto a seguir é sem dúvidas uma das melhores e mais bem humoradas reflexões sobre o gozo psicanalítico que já li. E eu leio. Muito. Segue o feito:

"O gozo, no universo psicanalítico, não tem exatamente a ver com o cume do prazer, se relaciona muito mais à condição humana da punheta subjetiva. O gozo, nessa perspectiva, é portanto a vontade de repetição, não de diferenciação. Trata-se daquela excitação prévia por algo que quase sempre nos leva a uma enrascada; não a qualquer enrascada, mas a uma enrascada muito familiar. Por exemplo, aquele que está em uso problemático de um psicoativo e com repertório de vida reduzido em função disso, tem seu gozo localizado não no momento em que fuma, inala, ou se pica; atingindo assim, o orgasmo mental. 

Não. O gozo se localiza justamente na fissura, no momento em que se percebe não conseguir ficar sem o objeto de desejo, momento exato de um dar-se conta: "não, não posso fazer diferente, me rendo ao calmante, ainda que ele me faça mal; à torta de chocolate, ainda que eu tenha diabetes ou que me engorde." E então todo o processo que envolve a busca pelo objeto de desejo (a ida à farmácia, os olhos ansiosos pelo cardápio à procura pelo que "não se pode") compreende o gozo. 

Pois bem, o gozo e a moita se conversam. Moita, pra quem ainda não sabe, é o fenômeno de angústia diante de uma roubada amorosa, sentida logo após fazermos uma cagada (por isso moita: local de excelência da merda e, quanto mais merda se faz, mais difícil sairmos da moita, pois nos desesperamos e achamos que outra merda tapará a merda anterior e assim continuamos a fazer cagadas ininterruptamente). Note que a moita pode ser ocupada por somente uma pessoa da relação, muito difícil as duas pessoas estarem inseguras, ao mesmo tempo, uma com a outra, na trama amorosa. 

Por isso o negócio é simplesmente sair da moita, ela não é pra dois, é pra um. Saia e o outro a ocupará, quase que inevitavelmente, por experiência da humanidade. Pois então, o gozo é o prenúncio do sentimento-moita. Nós nos enamoramos por nós mesmos enamorados. Reside aí a dificuldade de abandonarmos relacionamentos obviamente inférteis. Não temos resistência exatamente em desistirmos do outro que sabemos não render, mas de nós mesmos nesse estado monalisístico que é o de sentir borboletas na barriga. 

A simples idéia de não termos alguém pra bater uma punheta subjetiva ou literal na hora de dormir já nos entristece, e aí damos início ao ciclo-gozo. Mesmo sabendo que não é uma boa, manuseamos o celular, escrevemos e reescrevemos mensagens dosadas, absurdas, ousadas, apagamos, digitamos até o ápice do gozo psicanalítico: os milésimos de segundo que antecedem a tecla "enviar". A moita, por sua vez, aflora vederjante e implacável ao visualizarmos "mensagem enviada". Em resumo, ao contrário do que nos induz a pensar o senso comum, gozo e moita nada tem a ver com sexo. O bom sexo. O sexo gostoso, quente, de entrega, de antes, de depois, de café, de sexo de novo, de cumplicidade, de confiança, de amor. Nada, nada a ver.."

Reminiscências

Não existe um único dia que eu não lembre. São coisas tão estupidamente simples, desconexas, como cheiro de chá de erva-doce, uma curva acentuada, o nascer do sol, uma maldita e minúscula flor na grama que ninguém mais parece reparar. Ando me sentindo uma caçadora de lembranças. Todos os dias cavo um pouco mais fundo, numa ânsia de encontrar algumas que possam ter se escondido, encobertado, quiçá camuflado.
   As que possuo estão se esgotando, não dão conta de matar a saudade crescente de ti, fortalecida e nutrida pela imposição da tua ausência. Encontrar lembranças foi a forma que encontrei de te ter e te levar comigo, veja só. Sei que de nada adianta, mas queria que soubesses que cada passo que dou, cada som que escuto, cada minúcia que percebo, sabor que sinto, grito que contenho, choro que tranco, emoção que broto, vem impregnados de um pedaço teu.
   Não quero que entenda mal. Eu consigo lidar com a tua falta. Não me impede de sorrir, de enxergar o mundo em seus detalhes, de viver como se deve. A saudade em si é um desconforto que eu gosto de carregar, o que seria de mim ter vivido tão em branco sem ter do que sentir saudade? Dói, mas não me mata, embora também não fortaleça. O que mata não é tua ausência da minha vida. É a tua ausência. É te olhar nos olhos e procurar qualquer rastro teu que seja e não encontrar. É ver um sorriso tão endurecido que remete a um choro cristalizado. É me perder no vácuo que faz teu silêncio asilado nessa fala compulsiva. O que mata mesmo é constatar o teu abandono de ti mesmo.

(Espera)nça

Nada me desgasta nem me sufoca tanto quanto ter esperança. Cada um desses soprinhos de esperança são como uma esgotamento contínuo cujo fim nunca vem, então creio que deva ser pior que morrer em si. Vai matando aos pouquinhos, e nada do que vem aos pouquinhos pode ser bom. 
Esperança vem de espera, e espera não sei de onde vem, mas deve estar bem perto de impotência total, das mãos atadas, do ter que assistir a cena de camarote e segurar o estômago entre os maxilares. Eu te espero. Talvez eu tenha perdido a hora, simples assim. Tu, que para mim tens a preciosidade de uma jóia, preferiu rolar feito pedra de construção, talvez da mesma que eu arquitetei e que alicerçou a primeira frase. Apesar disso tudo, dizem que é a última que morre, então certamente a minha deve morrer depois de ti. Mas... espera um pouco. E isso é vida? 
Se a condição de te ter ao meu lado é manter meus olhos fechados, meus ouvidos tapados, meu coração pendurado no soro, lamento. Prefiro te perder a concordar com tua morte. Enfim, sem fim, te deixo um suspiro.