Havia uma flor cerrada




Como explicar a tristeza? A conheço tão de perto. Ela tem um gosto seco, áspero, corrosivo, e tão familiar que a própria constatação me consome. Mas dessa vez ela me toma encoberta num véu incógnito, percorro agora um território tão desconhecido, sem saber pra onde nem quando, nem o que vai restar de mim caso chegue. Nada disso, nunca, foi minha escolha. Estou tão triste que não há interface de linguagem. Quisera eu uma mão adentrando garganta abaixo e arrancando o buraco negro que jaz entre meus pulmões.

Há um espaço insustentavelmente vazio. Ele se expande pelos minutos do relógio. Cada segundo é um ano a menos, já não sei se para frente ou para trás. Como são frágeis estas tais linhas tênues, posto que outrora o mesmo espaço fora tão afortunadamente cheio, repleto, rico. Tanto faz. Não estou mais morrendo, quem está ainda vive.

Tem algo morto dentro de mim. Te chamei de assassino ainda incrédula sobre o fim. Terias tu, matado minha capacidade de confiar, e aquela parte que, por causa de cada parte, olhar ou pequeno gesto teu, sorria vencedora em conseguir acreditar mais um pouquinho no mundo? Isto me soa tão injusto que chega a ser psiquicamente ilícito, mas qual a indenização capaz de reparar um dano na alma?

Me sinto roubada. Sinto que fui roubada, em algo tão precioso, e de forma tão majestosa que estou empobrecida por dentro. Me sinto escassa, roída, e não posso mais levantar agora, em parte porque não consigo, em outra porque estou tão absurdamente cansada que nem sei como.

Havia um flor cerrada, que foi convencida a se abrir. A flor se abriu com todo o esforço e coragem que lhe restara nas raízes já inférteis, mas com tanto encanto e vontade que fora a mais bela já testemunhada por qualquer retina. E então, no auge do seu esplendor, se fez inverno,. A flor secou, sem deixar nenhum rastro de seu inebriante aroma, cor ou milagre. Pereceu com dor, e morreu triste.


Ambivalência



Alô? Oi, sou eu. Como eu quem, não te faz que tu sabe muito bem que sou eu. Ah tá, e não aparece ali na telinha do teu celular. Como assim deletou meu nome da agenda? Mas tu é muito infantil mesmo. Tu continua o mesmo de sempre! Ora, liguei por que sou adulta o suficiente para pensar que tudo bem querer saber como tu está de forma civilizada, o que não me parece ser teu caso. É, adulta sim, por quê? Que crises? Eu nunca tive crises, tu sabe muito bem que TPM é um momento em que nenhuma mulher pode responder por si. Que desculpa minha o quê! Eu sempre fui a pessoa madura dessa relação, tu sabe muito bem, com a pequena diferença de que eu sempre quis ter do meu lado um homem e não um filho. É filho, sim! Ou tu achas que ter que ficar mandando ir pro banho, comer direito, cortar as unhas, abaixar a tampa da privada, avisar quando vai te atrasar é algo que uma mulher espera ter que fazer com um homem barbado que não seja seu filho? Mas como assim controle? Eu nunca te controlei! Tu tem uma dissociação entre controle e cuidado! É mentira tua, pura projeção, porque tu sabe muito bem que se existiu algum controlador sempre foi tu! Ah, e quanto aos “onde, com quem, que horas, que saia é essa, que decote é esse, tu vai sair assim?”! Mas que cretino, exibicionista para se vestir é a tua mãe! Ah, falei da mamãe, não pode falar da mamãe que o bebê fica brabo. Crianção! Aliás, teu ciúme quanto aos olhares alheios era injustificado, porque os outros homens apenas viam o que tu mesmo não conseguia ver! Ah tá, eu que tinha que te perguntar se estava bonita, tu nunca dizia espontaneamente. Imagina só o que é para uma mulher ver outros homens olhando para ela com o olhar que ela só queria do seu. Não, eu não gostava de homens me olhando seu idiota, tu continua distorcendo tudo o que eu falo! Frouxo é a palavra. É frouxo sim, frouxo é a denominação para um homem que deixa de tratar sua própria mulher satisfatoriamente. Não to cuspindo no prato que comi, to cuspindo no prato que não me comeu direito. Bem que eu gostava o quê, eu fingia se tu quer saber. Isso mesmo que tu escutou, fingia, o que não é difícil, visto que tu é tão egoísta que não consegue nem diferenciar um orgasmo falso de um verdadeiro. O que tu está insinuando com isso, porque não fala diretamente como um homem? Que absurdo, eu nunca te traí seu grosso! Não, eu nunca quis. Não sei porque, tu bem que merecia já que quer saber! E daí que eu queria sair com minhas amigas, porque isso significaria traição, seu asno? Como assim más influências? Tu lava essa boca antes de tocar no nome das minhas amigas. O que tem que a Lili falava de homem? Ah, e aqueles vagabundos bêbados dos teus amigos, nunca falavam de mulher de certo. Como assim coisa de homem? Mas tu é um machista imbecil mesmo! IMBECIL sim, quer que eu soletre? Como assim vai desligar? Escuta aqui, seu imbecil, tu vai ousar desligar na minha cara? Tá contando o quê? Um, dois, três o cacete! Seu estúpido, grosso, insensível, tu vai continuar sempre o mesmo!  É isso mesmo e nenhuma mulher em sã consciência vai te aturar, nenhuma vai agüentar nem mesmo o pouco tempo que eu agüentei, tu vai ver só. Tchau pra ti digo eu! E que bom que desligou na minha cara por que assim não vai escutar que eu ainda te amo e que estou morrendo de saudades, seu idiota.

* Da série Contos e Desencontros