Atrás do escuro



Quem partiu a noite? Ou já será esse um costume nosso? Já está tarde e o sono deve estar fazendo amor com a tranqüilidade em cima de alguma nuvem insurgente. “Fica tranqüila”. Como se estar viva não fizesse mal algum pra quem padece. Ocorre que ainda não descobri como vou me inventar diante dessas importunas horas gagas à tua (quase) frente? Tudo isso pra não ter que encarar o destino de te amar ao lado da tua ausência, que piora quando escurece. Perco mesmo a fala, em fidelidade a mim mesma, entenda.

Não consigo morrer nas madrugadas porque são nelas que a vida chega. E as roupas todas espalhadas pelo chão fazem o melhor cenário da verdade tão perturbadora para os andantes vestidos. Estes que não entendem que minha alma tem índole obscena e opta por viver nua. Eu quem não deveria entendê-los, afinal, que alma precisa de vestes?

Nada em mim se faz mais ou menos. E nenhum de nós dois somos frutos ou serventes do acaso. Tenho medo do que faz sentido, mas prefiro continuar assim para me proteger da conveniência. De qualquer forma duvido muito que tu tenhas fôlego para enfrentar meus excessos, meus instintos, minha insônia, e especialmente minha clandestinidade. Prefiro crer que te preservo. E confia que o faço, a meu modo.

Não tenho código de barra, de gênero, de comportamento, é inútil me procurar em qualquer uma das inúmeras conjecturas mundanas. Mas tenho alma suficiente para alcançar o horizonte. Sei que com o passar dos dias esse miocárdio vai parar de me golpear no ritmo frenético em que se encontra neste exato momento. E sei que o vento vai levar com ele todos os lugares que teu cheiro me faz ir, mesmo que ele agora esteja por todos os cantos, mas desencantos são assim mesmo, fixados na minha pele.

Estou sim, cônscia dos pormenores. Estes pequenos detalhes. Quem mora atrás da cortina. Quem é artista sem platéia. Quem monologa ao telefone. Quem tanto almeja que se priva. Quem se esquece por tanto lembrar. Quem enxerga no escuro. Ah, e claro. Que o vento e eu, vamos para o mesmo lugar. Ele como eu, nunca verás. Mas sentirás quando viermos.

Mensagem de fim de ano




O texto a seguir desta vez não é meu. Uma excelência escrita por meu caríssimo amigo Gabito Nunes, do Caras Como Eu. Um neo-romântico, sem a falta de sal e pimenta de um Romeu shakespereano, mas sem os excessos da canalhice a la Nelson Rodrigues. Para quem não conhece o trabalho do escritor, permeado com uma malícia requintada, frases acrobáticas, maestria no verbo, pitadas de sarcasmo e pureza de sentido, vale a pena conferir.

Gabito é simultaneamente um colhedor e um artesão. Ele colhe as essências, os corações sufocados, a descrença, a dor, os amores em seu primeiro sopro, as paixões, as renúncias, os sentimentos ou a falta deles, as manifestações mundanas, as palavras possíveis e as não ditas como matéria prima, além de sua própria insustentável leveza de ser, e então confecciona escritos belíssimos. E apesar do nome de anjo, escreve como o diabo gosta. Por isso, claro, leio todo dia.
Segue:

FELIZ DESENCARGO DE CONSCIÊNCIA
" A mesma cena se repete quase o ano inteiro. De seis de janeiro a meados do Natal, tiro meu carro de ré da garagem, manobro, acelero em frente e cruzo com meu vizinho de porta. Aceno incerto com a cabeça num "e aí?" e ele age como se eu tivesse trazido o vírus Ebola para o bairro ou jogado sua filha pelada num fotolog.


Moro numa região nobre da cidade, apelidada jocosamente de "Beverly Hills". Onde os vizinhos não têm nome, onde os vizinhos cheiram free shop, onde os lares são doces, mas não irradiam laços nem desarranjos familiares. Aqui não tem churrasco na laje, não tem auê na rua, não tem dor de dente, não tem algodão doce, não tem Jorge Aragão a todo vapor, não tem criança jogando futebol com goleira de chinelo havaianas. Mas - uêba! - vai ter festa de Natal chefiada pelo vizinho fonofóbico. Pasme.


É a lei da recompensa. Debite sua frigidez e indiferença no mundo o ano todo e pague as contas do seu amor pagão no Natal, à vista, por desencargo de consciência. Instale luzinhas coloridas e ridiculosamente piscantes, ornamentos filiformes decorados com algodão em alusão à neve que miraculosamente rebentaria em temperatura veranista, e meiões megalo-patéticos onde um senhor de roupa vermelha e barba branquinha supostamente descarregará os presentes que não fizemos por merecer. Chamam de espírito lúdico, eu de esquizofrenia coletiva decorada com veadinhos.


A Broadway é aqui, onde todos tem uma peça super produzida a apresentar, sedentos pelos créditos, por desfilar em carro de bombeiros, disputando a tapa os figurinos de boca de palco. Pierrôs, Arlequins e Colombinas protagonizando grandes feitos. Enquanto isso, os pequenos gestos agonizam. A gente ama se odiando, à distância, trocando aqueles dois beijinhos "socialite" pra não borrar a maquiagem ou enganchar as máscaras cirúrgicas.


Ojerizo sim essa funçanata "dingobel", mande fazer uma placa de "anti-social". Penduro no pescoço com gosto, se "socializar-se" for dar um abraço anual, geralmente em dezembro, embalado por Vangelis ou Mariah Carey, ceando na mansão da tia Ilse, parabenizando canudos e anéis de formatura, cantando "adeus ano velho" bêbado, suado, com o cofrinho de fora. Feliz ano novo, tudo de novo.


Prometi nenhuma resolução este réveillon, mas abro uma exceção. Eu prometo gestos banais. Não fingir que não vi o braço amputado da tia que me vende capuccino, não fingir que minha avó não está mais viva, que desconheço a frustração sentimental da mãe do meu amigo, que não vejo o alcoolismo do meu colega, a cara suja de fome do piá indígena na sinaleira, que meus amigos narcóticos não são responsáveis pelo roubo do meu carro ou minha crônica falta de ar dentro do terno preto, feito sob medida para aparentar alguém que não sou. Meu pai me ensinou duas coisas nesta vida: 1. Não abra o vidro de pepino com faca; 2. "All You Need Is Love". E o filhodaputa estava certo. O resto é merda mal saneada.


Promessa feita, começo a atravessar velhinhas na faixa de segurança depois do Dia dos Reis, claro. Quando desmontarem essa parafernália que pisca e não cacifa um facho de luz pro fim do túnel. Não darei o gostinho de que esta "mini-reflexão-natalina" respingue iluminação artificial nas minhas boas ações. Só pra contrariar, coerentemente."

Depois deste texto, fico mais confortável pra desejar um feliz Natal e ano novo para todos. Pronto falei.

Talvez no tempo da delicadeza...




Acordei sem despertar naquele dia. Todas as pulsões chacinavam-se, esgotadas. Meus pensamentos espalhados por todos os cantos, como cigarras performáticas de um verão glacial. A princípio pétalas, mas ali o caule inóspito revestido de um silêncio mortal.

Quando caminho por entre as sombras dos teus aforismos, vejo que são tão ou mais desordenados do que os meus. Não fazes idéia. Reprimiria os anseios submetidos à ordem de infração, sob teu magnetismo indesviável. Até mesmo me soltaria sem bússola caso fosse, mesmo que sem pouso. Ainda que sem repouso. Faria.

Entendo os receios, mas quanto à confiança devo alertar que sou um contra-senso aos que duvidam. Aos que não crêem sou mesmo um paradoxo, um demônio de silfos vestindo asas barrocas. Para os que não se arriscam na exuberância da soltura, aceito que me culpem. Que assim seja e me poupem de seus desgostos.

Nós somos d’outra natureza. Teu espírito também foi tecido em lugar edênico e estamos atrelados pelo mesmo fio. As mesmas dores, a mesma angústia, que já cristalizam pelas frestas de virtudes. Os subsídios já estão todos forjados.

Quanto às pedras atiradas, não procuro lapsos de bondade em olhares alheios, por onde possa encontrar ciscos de reconhecimento vulgar. Nem mesmo desejo partilhar parte da culpa através dos julgamentos de outrem. Faço por inteiro e que a conseqüência seja cabalmente minha. Hei de seguir da mesma forma, sem margem, sem método, com amor irrestrito.

Destas almas inquietas como as nossas, dizem, depois  que morrermos teremos vivido. Só então viraremos bons poetas. Mal sabem de onde viemos, por onde andamos. Ignorantes dos ventos que nos fazem içar as velas, bebendo poesia no remanso das águas. Que assim seja a sentença e custo. Cada qual sabe da própria renúncia, mesmo que seja por inabilidade.

Ainda tenho erros por cometer, e não há como ser d’outro modo. Assino cada um com nome, sangue e digital. E após toda essa deselegância virá nosso tempo, onde te alcançarei subitamente, irreversivelmente. Quiçá na face imprevista da poesia que corre a galope,  abruptamente carregada pelo vento. Sem mágoa, sem volta. Por inteiro.

Rosas do cotidiano




Se por onde passo, arrasto.
No passo, no lastro, no riso
Fica sempre o espaço guardado
Esse que não é de ninguém
Esse que é do mundo inteiro

Lembranças sorrateiras
Visitam-me de madrugada
Sorrisos petrificados
Já me escorrem pela face
Sem garantia de memória futura

De lembranças, quero os olhos
Os mesmos olhares calados
Até que percebo que não são lembranças
Até que entendo que estão fixados

E descubro que desconheço o sossego
O silêncio é um grito contido
A claridade é a ausência de escuro

Continuo passando sem passeio
Continuo sentindo sem abrando
E se tento é atentado
O dano tem gosto de morte
A dívida, de vida inteira

O espinho da flor é abrigo
Mas fere sem justificativa
A lâmina do corpo é só tristeza
A lâmina no corpo, também



"Elephant Gun


If I was young, I'd flee this town
I'd bury my dreams underground
As did I, we drink to die, we drink tonight
Far from home, elephant gun
Let's take them down one by one
We'll lay it down, it's not been found, it's not around
Let the seasons begin - it rolls right on
Let the seasons begin - take the big king down
Let the seasons begin - it rolls right on
Let the seasons begin - take the big king down
And it rips through the silence of our camp at night
And it rips through the night
And it rips through the silence of our camp at night
And it rips through the silence, all that is left is all
That I hide"

Nos olhos de quem vê. No peito de quem sente.




As divagações prodigalizadas e a dissimulação no tom que permeava a prosa já estavam lhe incomodando há algum tempo. Haviam percorrido quase todos os assuntos. Ela, na verdade. Ele se sentia perseguindo-a por plantações de milho, onde escutava sua voz, sem precisar de onde vinha. O tom da argumentação desbotada parecia uma verdadeira arte em protagonizar o nada. Sem vida. Sem calor. Vazio. Não conseguia encontrá-la. Exclamou quase em súplica:

- Quando tu vais finalmente tirar essa roupa?


Disse, com o olhar mais intrusivo que ela podia se recordar, pelo meio da íris intrêmula.

- Como assim?
- Vai tirar ou vou ter que tirar pra você?

Ela não acreditava. Só poderia estar ouvindo errado. Avistava por detrás dele uma enorme vitrine de vidro, que separava o café em que estavam sentados da rua. Lá fora passos nervosos. Ali dentro lenços de papel secavam suores de testas distintas, e os últimos goles dos restos amargos de expresso, tomados em pé. Lá fora, luz-cinza do urbanismo diurno, cujo clarão lhe rasgava menos a córnea do que o par de olhos a sua frente.

- Não entendi o que você disse.
- Precisa que eu fale mais alto? Quando vai tirar essa roupa?

O tom era incisivo, alguns escutaram. A expressão no rosto dele, a levava para bem longe da feição trivial da garçonete que seguia esbarrando as ancas largas em seu cotovelo e para bem perto do açougueiro de confiança de seu pai, que cortava uma peça de costela com a fúria equivalente ao prazer de cada talhada.

- Enlouquecestes? Quem lhe dá o direito de falar assim comigo?
- Tu mesma, através das tuas insinuações!

Pasma, atordoada, ainda incrédula, sentia algo lhe correr no cerne para estalar no rosto. Justo ela, recatada como era? Justo ela, que jamais havia tomado a iniciativa frente ao interesse em um homem? Ela, se insinuando? Não, jamais. Ela, nunca. Já prestes a se levantar, ele tomou a frente da menção lhe impedindo a passagem com a mão, indo de encontro com a dela. Segurando-a, disse :

- Espere!

Embora um leve rastro de tenuidade na voz, o olhar era o mesmo. Fixo, indiscreto, quase um estuprador de suas pupilas. Ela, uma moça de existência. Haviam tantas e tantas da outra laia. Ela, que não se contentava apenas com o nome de batismo ou do que se resolvia batizar. Ela que prezava por respeito, intimidade, tudo o que não tinham. Ah não, ela não. Ela queria gritar. Lhe queimar o rosto jogando-lhe o capuccino pela metade.

- Não te deixo sair daqui sem uma resposta! Ainda não entendeu a pergunta?

Sentia tudo que pulsava ao mesmo tempo. O que continha, ali parecia acordar. As maçãs rubras da face denunciavam o misto de vergonha e revolta, sem saber qual das duas lhe tomava em maioria. Como um raio, tudo aquilo que nunca dissera antes lhe correu pelo tubo-digestivo. Não trancou, quando viu que chegara até a garganta.

- O que pensa que eu sou? Qualquer uma? Pensa que sou como essas mulheres com quem te envolves? Pensa que sou garota de uma noite? Que tu vais comer e cuspir fora, feito caroço de azeitona? Ah não, meu caro. Eu não. Nunca lhe dei a liberdade para falar dessa forma comigo. Nunca, está ouvindo? Vocês homens não prestam. Vem uma mulher e só pensam em uma única coisa: sexo. Nada mais que isso. Selvagens! Exijo que se desculpe, antes de me levantar daqui para nunca mais olhar na tua cara!

Ele permaneceu a sua frente, e voltou a tocar a mão dela, prontamente retirada. Uma curva entre os olhos dele, advinda da testa franzida, lhe completavam a feição. Desta vez, a perplexidade lhe embasava a retina. Alguns minutos de eternidade em silêncio. Sem desviar o olhar, lhe falou calmamente.

- Não estava me referindo a sexo. Perguntei quando tu vais tirar esta veste que usa para o resto do mundo, e se abrir comigo. Desde a primeira vez que eu te vi, quero te encontrar mas tu não deixas. Tem sempre uma palavra, um sorriso insincero, uma fala vazia na tua frente. Mas algo em ti insinua, algo que não sei quando abre, mas sei quando fecha. E esse algo me diz que tu precisa da pergunta para fazê-lo. Queria apenas poder te enxergar como és. Queria que pudesse te mostrar, como se nunca antes tivesse feito e te machucado. Queria poder te conhecer sem artifício, sem vestimenta, sem máscara. Este sou eu. Muito prazer.


...
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Relacionamento aberto. Topa?



Olha, meu bem. Nós temos que conversar. Sim, eu sei o quanto a gente se gosta em ordem sempre crescente, quanto nosso encontro tem o raríssimo poder de parar o tempo e tua presença, o surpreendente efeito de me trazer mais calma. Surpreendente é a palavra que define um bocado de coisas sobre ti. E isso é bem complicado nesse mundo de iguais.

Eu sei também que o mais natural agora seria considerar tua requisição de oficialidade e titular o cargo. Mesmo por uma questão prática, porque essas definições civis ou pré-civis não têm importância alguma para mim. Mas assim poderíamos abdicar do malabarismo de conceitos que o mundo parece exigir, ao referirmos um ao outro. “Quem é ele(a)?”. “Ah, minha... amiga.” “Rolo”. “Ficante”. Termos dolorosos estes. Meu namorado e/ou minha namorada. Fim de papo.

Um “porém” existe, no “entanto”. Para isso, teremos que fazer um contrato prévio. Realidade posta, devo confessar que tenho uma necessidade um tanto quanto inusitada, e não sei se tu vais aceitar. Sei que é diferente, meio moderninho ou mais velho que o mundo. Sei também que é preciso coragem além da conta para permitir isso. Entendo perfeitamente. Mas preciso te pedir, porque sem este detalhe não dá, espero que tu entendas também.

Além de te namorar, eu quero ter um caso com vários homens. E algumas mulheres. Pronto, falei. É bem isso, diretamente falando. Não tem como introduzir de outra forma. Mas não acaba por aí. Tem mais, e consiste na parte mais difícil. Não só eu quero que tu aceites meus casos “intraconjugais”, mas que tu mesmo me apresente a cada um. Isto porque tu já me apresentaste para alguns extremamente interessantes, e então penso que tu podes, além de ser meu namorado, ser uma excelente via de intermédio. Será que isto te soa muito estranho?

Eu quero ter um caso com menino que mora aí dentro. Esse que quando fica doente, corta o dedo, tem dor de cabeça, de barriga ou outra qualquer, fica completamente regressivo, assustado e manhoso, mesmo que jamais confesse, sempre jurando que realmente se sente pela hora da morte. Tenho um instinto materno para nutrir.

Quero ter um caso com teu lado feminino, que dá palpite nas minhas escolhas, indo das cores dos vestidos até as que podem mudar meu futuro. Que adora conversar, e tem sensibilidade para ouvir até o meu silêncio, indo além da competência pragmática. Pode ter o tal instinto materno também, porque muitas vezes o “menino dramático” sou eu.

Quero ter um caso com teu lado homem mais velho, que me ensina sobre a vida, que saiba coisas que eu não sei. Que critique a minha inconseqüência e impulsividade. Que me lembre que precocidade não é sinônimo de maturidade. Que ostente o prazer sem ressalvas, moralidades ou preconceitos.

Quero ter um caso teu lado adolescente, idealista, sonhador, inconformista, em constante transição. Esse que ainda não cansou porque esta apenas começando. Com um tanto de ingenuidade, um tanto de romance, mente agitada, corpo pulsante, sorriso escancarado, passo largo e peito aberto. Tenho uma inquietação crônica para dividir.

Quero ter um caso com teu lado artista, que como cegos e crianças, enxergam no escuro. Que faz milagres. Cuja própria retina incide em um portal entre o mundo dado pelos sentidos e consensos, tal como ele não é, e o mundo das estrelas distraídas, das cores essenciais, das verdades circundantes, dos verbos transcendentes, dos outros universos.

Quero ter um caso com teu lado feminista-pero-no-mucho. Contra os assédios execráveis pelas ruas, os preconceitos a respeito das capacidades intelectuais, filosóficas e políticas das mulheres, contra a condenação das saias, mercado de trabalho e divisão de tarefas, mas a favor das diferenças evidentes de gênero, sabendo que cabe ao homem assumir a direção numa viagem, as lâmpadas queimadas, e as latas de conserva.

Quero ter um caso com teu lado espontâneo, que dê risada quando não pode, que fala o que pensa mesmo se for qualquer bobagem, porque bobagem falada não é besteira. Esse lado que se arrisca, que petisca, que não ensaia, não faz pose, não sobe no palco, canta no chuveiro, me convida pra dançar na sala, se lambuza tomando sorvete, se declara em público, que não teme a exposição e acha que ridículo é seguir a regra e que estranho é parecer normal.

Quero ter um caso com teu lado homenzinho, que bebe cerveja com os amigos, xinga vendo futebol, acha que encontra o caminho sozinho, joga bola nas quintas, lasca o joelho, pede cuidado, não encontra objetos que estão a poucos palmos do nariz. Que me faz andar do lado de dentro da calçada, e faz de conta que presta atenção quando eu falo nos efeitos maravilhosos do último creme que comprei pra pele quando na verdade esta tentando pressagiar os possíveis placares dos jogos do Brasileirão, para ganhar o bolão de apostas entre os camaradas.

Quero ter um caso com teu lado tranqüilo, que encontra felicidade em balanço de rede, som de violão, fruta colhida do pé, ar gelado da serra, barulho das ondas, uivo de vento. Que faz amor sem pressa, beija sem intenção, que toca meu braço e põe meu cabelo atrás da orelha instintivamente quando eu conto do meu dia, que me diz que vai ficar tudo bem quando me abraça forte e me lembra que já estamos distantes de tudo.

Não quero que fechemos a nossa relação em conceitos ou exclusividades identitárias. Quero um relacionamento aberto. Se amor não for amor-livre o suficiente para que a gente possa ser, então vamos ter que chamar de outra coisa porque amor não é o nome disso. Em suma, eu quero todos. E todas. Quero conhecer teu inteiro e te apresentar o meu. Quero ter o teu inteiro, e poder te dar o meu. Topa?





* Foto de Ritinha, que apropriadamente também atende por Rita, Ana Rita, Babaloo e também se permite viver a pluralidade de si.



Caminho das Pedras



Sob a enorme pedra da palavra que encera um assunto, existe uma pluralidade de vocábulos, discursos, expressões, verbos, sujeitos e predicados esmagados. O diálogo empedrado referente consiste em: “Oi, tudo bem, o que andas fazendo?”. Geralmente é seguido por: “Oi, tudo e contigo? Ah, o de sempre, estudando, trabalhando”.

A pedra se chama cordialidade posterior. Ao que? Varia bastante. Não pretendo responder, então petrifico assim. Levantando-a porém, encontrarias a seguinte resposta:

Como tudo pode estar bem do jeito que as coisas estão? E mesmo que assim não estivessem, ainda teria fome no mundo. Então não está tudo bem, nem jamais estará, pelo menos no prazo que se estende do meu nascimento a minha morte, depois não sei.


Ando fazendo uma porção de coisas. Continuo pensando em ti todos os dias. Sinto tua falta um tanto. Reencontrei-te por um triz para desencontrar tão depressa, que tempo anti-horário foi esse? As vezes te procuro na memória, porque tem traços bem singelos do teu rosto que a ausência já me anda embaçando. Sabe como diz a música, “o esforço pra lembrar é a vontade de esquecer”.


Continuo fumando meus cigarros de cereja eventualmente, tentando comer bem regularmente, treinado assiduamente, lendo compulsivamente, arriscando inconsequentemente, sentindo exageradamente e trancando o choro que toda noite vem me visitar em forma de insônia.


Sigo tentando me convencer que o não teve inicio nem fim simplesmente não existiu, e sou tão quase boa na argumentação quanto na arte da negação. Permaneço inconformada com o esvaziamento da nossa geração, temendo muito me perder a ponto de me acostumar.


Continuo cantando todo dia, independente do meu humor, o que varia é letra de canção, O violão que sabe. Sigo escrevendo e estudando todos os dias. Tenho pintado e desenhado bem menos do que gostaria, inspiração nunca falta, o que falta é calma. E gosto de ter, para tal. De onde ela vem mesmo? Sim, voltei a escutar Los Hermanos infatigavelmente.


Ando com medo de uma porção de coisas. De ser cais que nunca recebe a chegada. De ser navio que nunca encontra o porto. Ou de continuar sendo oceano, que tanto abriga, mas tanto revolta. De ser “estanque, como quem constrói pontes e não anda”. A juventude passa tão rápido, e desde muito cedo sinto o desgosto de vê-la arrancada de mim. Nos últimos dias anda me assombrando ainda mais.


Minha alma continua tão ou mais inquieta como da última vez que nos vimos, minha mente idem. Meu coração anda aprendendo sobre reciclagem e desenvolvimento sustentável, mas continua com déficit de atenção. Sigo em forte crise existencial e minha intimidade casual com a filosofia tem piorado bastante o quadro.


Continuo lutando contra mim. E por vezes me vejo correndo atrás da cenoura, feito o burro de carga. Continuo levando tristeza nos olhos, aperto no peito, e por vezes me sinto insustentavelmente leve de tão pesada. Tão inundada que emudeço. Mas bem sei que o que fala meu silêncio é língua morta, quase ninguém traduz. Talvez ninguém mais além de ti.

Pactuemos então, e deixemos as pedras quietinhas. Tudo bem?