Para bom entendedor, suco de um gomo mata a sede.



Por mais que escreva, ao ponto de encontrar certa facilidade na descrição do momento em que uma laranja brilhante em baixo da duna de laranjas opacas na feira de frutas do supermercado grita pra que você a escolha como quem dissesse me coma, me devore, deixe que meu doce sumo te escorra pelos lábios, e você afoita sem discernir se está com fome ou com tesão, a arranca de sua base criando uma avalanche de laranjas ladeira abaixo e olhando desconcertadamente a sua volta se perguntando se alguém percebeu o seu ato desastrado, ou como pode o excesso de testosterona produzida pelos seus ovários policísticos fertilizar a sua imaginação com as coisas mais assexuadas possíveis - como uma laranja - quando o sentimento corre de verdade em mim, pouco consigo escrever.

Me faltam palavras. Quer dizer, palavras existem, é lógico. Muitos são os poetas, vivos e mortos que as encontram ou já as encontraram. O problema não está nas palavras, propriamente. Muito provavelmente esta em mim e na forma como eu sinto as coisas.

Como pode alguém sentir tanto, que se esquece do que sente para conseguir sobreviver àquilo? Quando me refiro a sentir tanto, falo de algo que realmente não cabe em um corpo, quiçá em algumas palavras. Ou frases ou textos, mesmo em um livro. Não cabe.

Não me refiro a viver a flor da pele, me refiro a viver em carne viva. Alguém aí julga o meu sarcasmo ou as muralhas de aço que fui construindo ao meu redor ao passar dos anos? Sim de aço. Palha, madeira ou tijolos são para porquinhos principiantes. Alguém julga meu esquecimento ou minha necessidade temporária de evaporar? Porque sumir deixa rastro, evaporar poderia ser mais eficiente. Ainda assim, precisaria desafiar a Física para evaporar o sólido temporariamente e portanto de maneira reversível. Sumo portanto, e o melhor é poder voltar e ter para onde voltar. Eu tenho e honro isso.

Sem mais dispersões, descobri desde que criei o e-mail deste blog que tenho mais leitores do que imaginava, sendo que um deles me escreveu dizendo que acha a maioria dos meus textos muito "pesados e viscerais" e o ponto chave do presente texto estava em conseguir entender (uso a escrita para me entender, e daí?) como centrar uma narrativa com as exíguas proporções de uma notícia jornalística, sem sangue nem lágrimas, simples como a vida é. Pois é, deveria ser, mas não como eu vivo. Às vezes chego a me questionar como que eu posso sentir as coisas em tamanha intensidade e sobreviver. Verdade posta, eu não sobrevivo. Eu morro a cada vez. E sinto toda a dor do nascimento de novo, pois tenho que renascer a cada novo fim, inicio ou meio.

Renascer, não significa voltar novinha em pele de bebê. Significa seguir vivendo, com menos tecido coberto, e mais carne a mostra. O que morreu em mim não evapora, tenho que carregar as cruzes e elas pesam as vezes. Mas não reclamo, já que não me permitem que eu morra mais de uma vez do mesmo mal.

O que gostaria realmente de poder me livrar, é dessa minha mania insuportável de prever a dor do nascimento pós-morte e virar pó antecipadamente ao começar as coisas pelo fim, vivendo o meio para voltar ao inicio, onde deveria estar meu ponto de partida. A vida tem vontade própria e segue um curso natural das coisas, brinca com minhas cicatrizes e me cerca por todos os ângulos para que eu comece pelo início de uma vez por todas. O que por sua vez trás todos os meus fantasmas e assombrações, minhas pseudo certezas, minha racionalização explicita que é a minha defesa mais bem elaborada.


E lá vou eu denovo nadar no sentido anti-horário do meu próprio tempo, quem tem coração que sangra sabe como é. Escrevo assim porque não sei viver e nem sentir de outra maneira que não seja por inteiro. Minhas árvores fazem sombra, meus frutos são latentes e meus gomos dão um caldo tão denso que talvez um estômago mais frágil tenha que misturar com água. Tem mais, tem sempre muito mais naquilo que você leu. Então imagine que você lê os textos de alguém que morreu e nasceu varias vezes numa mesma vida e que nem tanto tempo de vida propriamente dita tem. Por isso entenda que às vezes eu vou escrever na apologia ao “tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com minha dor”. Tenho certeza de que não fui clara. Mas é assim mesmo, eu nunca encontro as palavras. Laranjas são o canal.





PS-

Quero provar que existe de fato um inconsciente coletivo. Uma hora depois que postei este escrito, meu amigo Francis Londero, que nunca sequer decora o endereço do meu blog, me envia um texto que vai absolutamente de encontro com o que tentei escrever. Como achei o texto dele genial, pedi a autorização do próprio para postar aqui, em complemento. Seguem suas palavras:

"Realmente, a melhor escrita, ou, as melhores idéias nos alcançam em momentos inoportunos, no caso, quando não as esperamos. Pode ser numa noite mal dormida de insônia que resistimos fazer outra coisa senão dormir, assim como depois de muitos goles de vinho já embriagado por Dionísio onde somente encontramos linhas tortas. Sei lá!!!

O fato é que no momento da distração e até mesmo do não querer pensar é que ocorre aquilo que desejamos escrever, mas, que sempre acabamos por deixar de lado por imaginar que existirá o momento propício para isso.

Pobre escrita que sucumbe em sua naturalidade quando ambicionamos fazer dela uma burocratização. Os traços neuróticos que tomamos para nós como segurança para determinada produção somente aniquila o Ato singelo da criação.

O pior disto é que não ocorre somente com a escrita. Por comodidade efetuamos isso por todos os lados de nossas vidas - a cercamos com arame farpado. Atos direcionados em oposição a liberdade da criação. Creio que isso possa ter relação com o medo da morte, já que criação sempre vem acompanhada do falecimento daquilo que tínhamos programado por hora. Logo, podemos presumir que a criação é a maior de todas as assassinas!!! Mata o script ao nos jogar para o improviso. Lugar do inesperado paradoxalmente tão esperado pelos humanos medrosos que ficam a protelar tal instante. Como já dissera Nietzsche: Humano, demasiado humano!

Finalizando por hora, uma última frase que não sei mais de quem é (se é minha ou do Nietzsche): A revolução, a paixão e a criação somente são possíveis em momentos de esquecimento."

Born to be wild





Hoje a selva se curva
Em meio aos cordeiros
Poucos são leões

O relâmpago e o estrondo do trovão
O movimento e a permanência
Toda realeza felina
A majestade, a garra e a soberania
“Um filhote de leão, raio da manhã ”
Parabéns meu fiel amigo



“ And I'll be there when the stars don't shine

Till the heavens burst and

The words don't rhyme

(...)

You see I've always been a fighter

But without you I give up”

Invento


Se eu não segurar
Caso a lágrima escorregar
Invento a canção
Se os olhos enfadarem
Se cansarem de enxergar
Invento o sonho

Se ninguém for me seguir
Caso eu tenha de partir
Invento a ilha
Se acaso eu me ferir
Ou até dilacerar
Invento a cura

E para aquilo que não cura
Invento o tempo
Se eu me acostumar
Ou para não enlouquecer
Invento insanidade

Para não me adaptar
E não vir me conformar
Invento a guerra
Se o corpo desejar
E a alma concordar
Invento o deleite

Para lembrar de não errar
Invento a culpa
E para o dolo do pecado
Invento o perdão

Se for hora de lutar
Pelo próprio sangue honrar
Invento a batalha
Se não tiver como voltar
Se em mim vier matar
Invento o novo
E volto forte

Quando não conjecturar
Se a sombra vir pairar
Invento a luz

Se tiver de disfarçar
Ou precisar expressar
Invento a arte
Quando a dúvida chegar
Em ambigüidade eu me tornar
Invento o inverso
E selo o verso

Se eu parar de respirar
Se a garganta laquear
Invento o ar... aspiro
E inspiro

Para prosseguir
Ou continuar
Para persistir
Ou para recuar
Para progredir
Ou adiantar
Para florescer
Ou para prosperar
Para viver...
Invento

Mas para existir
Eu vento

Não se acostume!


Concordamos que o mundo está caótico. É senso comum o quanto o ser humano faz jus à frase eternizada de Einstein, que já sabia que além do Universo, podemos vislumbrar o infinito na estupidez humana. Irei poupá-los de listar aqui exemplares desta dada condição – devo confessar que até iniciei e desisti – uma vez que a lista também não chegaria ao seu fim. Sim, concordamos.

O que me fascina é que em meio a tanto absurdo, destruição e imundice, o ser humano tem a capacidade de expandir-se, de sobrevoar, de encontrar tesouros que se escondem em meio às terras secas.

Sim, tem. Afinal de onde vem a arte? De onde vem a boa música? De onde sai a poesia espremida do pulso, que ainda pulsa? Não basta ter pulso. Deve pulsar. O mundo nos convoca com uma força descomunal ao anestesiamento dos sentidos. Corporalmente temos o tato, o olfato, a audição, o paladar e a visão. É através destes sentidos que a gente “pega” o mundo, ou que deveria. Porque a correnteza nos convida enfurecidamente a entrar no piloto automático.

Entrar no piloto automático é uma das coisas mais tristes que eu conheço nesse mundo. Sentimentos recreativos, lágrimas reativas, palavras esvaziadas, rotinas carcerárias. Os desejos são raptados pela lógica de consumo, os amores produzidos e as relações flutuam na mesma órbita mercantil. A música foi corrompida, a criação foi anulada, a alma pede “arrego” mas o tráfego segue furioso. Loucura não seria fingir que isso é normal? Os valores estão deveras distorcidos.

Não são apenas pessoas rasas feito água de açude que ligam o botão do piloto automático no momento em que acordam, e desligam quando vão dormir, onde apenas em sonhos se permitem outras percepções. O anestesiamento é quase que um sintoma contemporâneo. E como todo sintoma, o princípio se encontra no ataque ao agente invasor. Inversamente no caso, transformar-se em um microorganismo que sobreviva contra a correnteza do macro.

Gostamos de nos acostumar. Sentimos certa segurança nos consensos e generalizações. Temos na coletividade e nas marés de mão única uma noção de pertencimento. É um caminho aparentemente cômodo, afinal o ser humano é um dos animais mais adaptáveis. Romper com hábitos exige força e coragem. Sair da zona de conforto. Experimentar-se. Olhar de novo. Andar na contramão. Perceber outras coisas. Sentir. Mudar de idéia. Tente, invente, faça uma coisa diferente. Seja o que for, não se acostume!

Porque gostamos de viajar? Porque em uma viagem, fazemos isso forçadamente: rompemos com nossos hábitos. E romper com as próprias convicções é libertador. Você mesmo já se perguntou?



  • Hoje, ao acordar, o que você pensou? Se é que pensou.

  • Você viu o que ao se olhar no espelho? Você costuma se olhar nos olhos quando encara o espelho, ou apenas observa sua aparência física?

  • E nos olhos das pessoas que convivem com você, desconsiderando o grau de proximidade ou até de afetividade. O caixa da padaria, o porteiro do prédio, seus familiares ou colegas de trabalho, seu parceiro. Você olha nos olhos ao dirigir-lhes a palavra?

  • Você canta dentro do carro bem alto e percursiona a direção ao ouvir uma música que goste, ou se segura com medo de parecer ridículo?

  • Você sorri quando vê uma criança indo para escola? Aliás você percebe as crianças indo para escola quando sai de casa?

  • Ao desejar “bom dia”, você o faz sem significado algum, porque cresceu ouvindo que era educado dizer bom dia para as pessoas? Ou realmente deseja que o dia seja bom?

  • Ao perguntar “tudo bem contigo?” você realmente quer saber?

  • E ao responder: “tudo bem!”? O que é estar tudo bem?

  • O que te fez sorrir pela última vez, sem que fosse um sorriso reativo ou cortês? O que faz teu coração sorrir?

  • Quando foi teu último choro, desses em que a alma transborda do corpo?

  • Você já disse que ama alguém sem querer ouvir de volta? Já te sentiu abençoado pela tua simples capacidade de amar alguém, independentemente da recíproca?

  • Quando foi a última vez que questionou as tuas certezas? Quais são as tuas certezas “absolutas”?

  • Você já calou fervorosamente a boca nervosa de um amor em uma discussão com um beijo?

  • Já esqueceu de que existe miséria no mundo escutando um coração bater?

  • Antes de julgar alguém, já se perguntou se não faria o mesmo caso estivesse na mesma situação? Já parou pra pensar que sempre se julga da situação onde se está?

  • Quando você come, você pensa na saúde do teu corpo? Quando deixa de comer, pensa na saúde da tua alma?

  • No sexo você batiza um orgasmo com um beijo apaixonado na boca?

  • Quando você deseja, você realiza? O que afinal você deseja?

  • Ainda no desejo, você tem comedimento entre ir atrás do que deseja ou engolir o próprio, pelo bem da humanidade?

  • Quando foi a última vez que você se sentiu útil? Quando pensou que conseguiu fazer alguma diferença no mundo ou na vida de alguém?

  • Quando sente que te supera? Tenta te superar, sempre? Sempre mesmo?

  • Quando foi a última vez que descobriu desenhos nas nuvens?

  • Já contou as cores do caminho que sempre faz ao voltar pra casa?

  • Quantas lágrimas você já permitiu que lhe molhassem o ombro?

  • Já cantou para alguém dormir?

  • Quando você venceu a própria preguiça?

  • Quantas noites já passou acordado porque viver, naquele momento, parecia mais interessante do que dormir?

  • O que te faz crer no que tu crês sobre ti mesmo?

  • Quando sentiu orgulho de ti pela última vez? Quando se orgulhou de ter alguém na tua vida?

  • Quando foi a última vez que você entrou em contradição? Você já chegou a concluir que os sentimentos são de fato contraditórios?

  • Você já se apaixonou ao ponto de sentir a ausência de uma pessoa como a falta de um membro do próprio corpo que até então nem sabia que tinha, mas que virou um órgão fundamental para que você consiga respirar?

  • Quando foi a última vez que perdeu a noção da hora?

  • Você se permite ficar triste, ou acha que tem algo de errado com você se tua vida não se aproximar de um comercial de cerveja?

  • Quando foi a última vez que sentiu o corpo arrepiar por algum som, gosto, visão, toque ou cheiro?

  • Você escuta a sua própria voz?

  • Alguém já te falou que na vida a única coisa sem solução é a morte, e que para todo o resto existe solução? Se ninguém falou, eu estou falando.

  • Você já parou pra pensar que se teve saco de ler isto até aqui, talvez o momento seja bem favorável para encarar o teu dia de hoje como o dia mais importante do resto tua vida?

Entrelinhas



Um guerreiro.

Um poeta.

Um irmão.

Um ser humano que reside do
lado esquerdo do meu peito.



Melodia. Mesmo. Menino. Melhor. Misterioso. Maior. Maduro. Memória.

Atemporal. Ator. Atencioso. Alma. Artista. Antes. Agora. Avante. Audaz.

Racional. Raro. Relíquia. Riso. Radicalismo. Relâmpago.
Recordação.

Coração. Canção. Criação. Cais. Cáustico. Clássico. Coragem. Carinho. Cultura.

Espírito. Exemplo. Elegância. Encantador. Escritor. Ético. Excelente. Enfático.

Lealdade. Luz. Leitura. Luta. Lenda. Lágrima. Luto. Lição. Latente.
Líder.

Leveza. Lema. Lembrança. Lançar. Lado. Letreiro. Lírico. Louvável. Liberdade.

Observador. Ousadia. Original. Olhar. Oceânico. Ouro. Obliquo. Ouvinte. Orgulho.




Como palavras nunca dão conta,
Meu Amigo, Riqueza e Cumplicidade Eternizam o Laço Legitimo... Obrigada!


Pena, constatação de insuficiência...





Não é a toa que ouvimos por aí que “não deveríamos sentir pena de ninguém”. Erroneamente confundido com compaixão, a pena é um sentimento pequeno, adequadamente proporcional ao tamanho daquilo que nos causa a própria. Quando sentimos compaixão por alguém, temos necessariamente algum nível de identificação, alguma mobilização interna por uma pessoa, uma história, uma situação, um acontecimento.

Seja o que for, enquanto a compaixão esta intrínseca à identificação, a pena é filha da indiferença. A compaixão consiste na constatação de uma dificuldade, de uma situação ou condição em que conseguimos nos deslocar para outro lugar que não o nosso. É um sentimento de acréscimo, no momento em que nos sensibiliza e portanto nos humaniza. E o que nos humaniza nos engrandece.

A pena não. A pena em nada nos acrescenta, já que provêm daquilo que subtrai. É uma substrução fraudulenta. Enquanto a compaixão expande nosso olhar, sentir pena é olhar para baixo, para os “pombos no asfalto, que poderiam voar alto, mas que insistem em catar as migalhas do chão”, como canta Zeca. Tal como se observássemos a paisagem e de repente vislumbrássemos uma faixa de terra queimada, escura e sem vida, destruída pelas mãos dos homens. Olhamos com pena ao constatarmos uma lamentável incidência, e seguimos adiante na estrada. Seguimos. Sem acréscimo, sem mobilização, sem oscilação.

Por essas e por outras, não existe nenhum outro sentimento, dentre os que eu não gostaria de sentir, como a pena. Vivendo em um mundo cheio de aberrações de todos os tipos e coeficientes, parece impraticável imunizarmo-nos deste sentimento. Mas preferia sentir ódio, raiva ou mesmo revolta. Ou qualquer outro sentimento que pulsasse, que mobilizasse. Estes sentimentos provem do excesso, do exagero, daquilo que transborda. Se transbordar é porque se move. Se mobilizar é porque está vivo.

A pena denuncia uma lacuna, um esvaziamento, ou o próprio vazio de sentido e de existência. Sinaliza uma falta, uma ausência, provêm da constatação de insuficiência. Um suspiro, um lamento por tal coisa ser como é, ou o que é. O que é medíocre, misericórdia, aquilo que nos causa a comprovação da miséria alheia. Compaixão é elevar-se para cima do lugar que se encontra. Pena é apenas olhar pra baixo.



Numa fila de caixa de padaria, uma senhora velhinha a minha frente deixa cair boa parte dos produtos que tentava equilibrar nos braços. Antes mesmo de virar-se para o chão, eu em minha habilidade juvenil já havia os juntado, lhe oferecendo-os de volta com um sorriso pueril. Ela me olha nos olhos e levantando as sobracelhas, e me diz:

“Mas veja só!”

Eu a reconheço, minha ex-professora de matemática do segundo grau.

“Não me diga, deixe-me lembrar. São mais de 30 anos lecionando... espere...”

Olhou para dentro de si, à esquerda, para cima, buscando-me na memória em algum lugar que sabia onde encontrar. Abriu-me um sorriso benevolente, uma mescla entre ternura e puxão de orelha, e bradou confiante:

“Manuela! Manuela Marques de Souza. Classe do fundo. Cheia de idéias próprias. Não poderia me esquecer”.

Abertamente brota-me uma risada solta, dividida entre afeição e concordância, como se instantaneamente eu tivesse voltado a me tornar aquela adolescente cheias de devaneios e divagações do fundão, ao ser repreendida pela professora.

“Te dei algum trabalho, não é?”
“Algum trabalho é modéstia tua”

Conversamos e demos algumas risadas. Ao voltar para casa, eu ainda regressiva e adolescente, peguei-me questionando se talvez muitos outros, senão todos dos meus professores de matemática, se lembram de mim. Desde a primária idade escolar, no momento em que fui introduzida aos números, até meu ultimo contato com uma aula de matemática, já na fase pré-vestibular, quando jurei adeus aos cálculos de uma vez por todas.

Lembro-me no período de infância, das tardes de sábado em que era obrigada a ficar trancada no meu quarto decorando tabuadas, e confesso que até hoje eu não decorei. Do maldito ábaco que meu pai certa vez me trouxe de viagem, o qual recebi em meio a protestos, sem entender o porquê ele não tinha me trazido o estojo super-mega-ultra completo de lápis de cor. Sobre o ábaco, ele mesmo se arrependeu ao constatar que tentar me explicar somas e subtrações por ali era tão útil quanto tentar ensinar um canário a dançar tango. Lembro-me do meu suspiro profundo a cada início de um interminável período de 50 minutos, que mais parecia assassinar meu eu-lírico com laminas de chatice do que me ensinar oTeorema de Pitágoras .

Estava dentro da ordem do impossível para mim assistir passivamente uma aula de matemática sem desenhar, conversar, trocar bilhetinhos, ouvir, comentar ou escrever músicas, fazer imitações hilárias , saber sobre o final de semana alheio, ou tentar decifrar se foi de fato proposital a incrível concordância do filme “O Mágico de Oz” com o disco do “Dark Side of the Moon” do Pink Floyd. Um terror para meus professores. Advertências, idas para fora da sala de aula, interregotorios no SOE, reuniões de professores, sentenças de postura em sala de aula.. Eu não conseguia assistir a uma aula de matemática. Não bastante, eu não ia mal nas provas, o que parecia ser ainda mais imperdoável, uma vez que barrava dos docentes do ABC do xyz matemático aquilo que certamente seria vivido vingativamente como um prazer orgásmico: me devolverem uma prova com um zero geometricamente redondo.

Fui convencida que meu total desinteresse pelo assunto, sempre fora uma grande dificuldade com a lógica. “Ela tem uma mente artística, não dá pra matemática” ou “ela tem uma capacidade de abstração inversamente proporcional à capacidade lógica” consistiram em algumas limitadas definições fatídicas da minha relutância com a irredutibilidade dos números.

De fato, pessoas com inclinações abstrativas apanham mais para aprender a lógica formal, não por incapacidade dialética, mas pela dificuldade de encontrarem significado em manipular números e símbolos de maneira mecânica, a partir de regras intraduzíveis e que levem sempre aos mesmos resultados.

Hoje consigo entender o que me deixava a matemática tão desinteressante. A própria objetividade indiscutível de um resultado. Uma conta que se estendia de um lado até o outro da folha, chegava a um número final incontestavelmente idêntico. Sempre. Sem questionamentos, sem dúvidas, sem atalhos ou desvios. Sem dupla-face, sem contradições, pré-definido. Se não fosse aquele, o resultado estaria errado. Não à toa, eu fui fazer Psicologia.

Assim eu pude comprovar que 1 +1 não necessariamente resulta em 2.

O 1 + 1 pode ser igual à zero. Pode ser igual à -1, ou -2. Pode adoecer e fracionar-se resultando em 1/1. Pode ainda gerar um outro 1, resultando em 3, ou mais. Pode fusionar-se, reduzindo-se a apenas 1. E se tiver sorte, pode somar tanto que se tornará capaz de resultar no infinito. Enquanto durar.

Sob a face da incerteza




Parece ser um destes dias
Em que as auras me segredam
Despertei-me confiante
Da inutilidade das certezas

Hoje sim e não parecem concordar
Despolarizando-se em talvez
Tal e vezes entre quebras de pontuação
Nas hesitações das reticências

Hoje eu cobiço mais que ontem
Desejo tudo que move e que volta
Tudo o que para e respira
Tudo o que embarca e se vai

Não asseguro a permanência
A existência me parece mais autêntica
Nada sei sobre mais tarde
Nem mesmo sei sobre esta noite
Mas nesta manhã, me bastaria
(...)

Oração




Deuses nossos que estão no céu
Abençoada seja a Nossa fome.
Venha a nós o Vosso bom senso
(Nem sempre) seja feita a Nossa vontade
Assim na espreita como ao léu

A coragem nossa de cada dia, nos dai hoje
Perdoai as nossas descrenças
Como não perdoamos nossos 14 pecados concebidos
Protejam-nos quando cairmos em tentação
Assim como todos aqueles por nós envolvidos
Livrai-vos do mal

Não cedais aos convites do ordinário
Vigiai nossas pulsões e pensamentos
Não permitais as nossas ações vaguearem
Nem reduzirem à faíscas perdidas
Desviadas pelas mãos da fúria dos ventos
Formando incêndio onde a relva deveria florescer
Agora e na hora de nossa sorte


Amém.

Anjos





"Procura-se um amigo

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.

Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive."


Vinicius de Moraes


Da mesma forma que meu azar parece ser uma brincadeira de um deus a observar um rato em um labirinto, a vida me prova que me guarda. O faz me enviando anjos. E recentemente me trouxe um, com olhos que eu pego emprestado quando me faltam cores. Quem quiser ver mais fotografias dele, clique no título.

Efeito devastador





Existem palavras que podem ter um efeito tão corrosivo quanto engolir um copo de veneno. As vezes basta uma meia dúzia de palavras para se chegar nesse efeito espada-de-zorro que te rasga no meio mais de uma vez, te corta a roupa para deixar teu corpo exposto pelas frestas. Palavras têm este poder: podem te lamber o ego, te acalmar o espírito, fazer o teu coração encontrar composições sonoramente mais ritmadas, ou serem tão agradáveis quanto um fio de espada dentro da própria carne.

A falta de palavras porém, pode ter um efeito mais devastador que a fúria da mãe natureza em tempos de efeito-estufa. Aliás, não poderia encontrar uma analogia mais adequada do que esta no presente momento. A coerência foi a mesma de sempre, remediar primeiro para depois se tentar prevenir.

“Oi, tudo bem?”

Uma pergunta sem sentido algum, puramente automática.

“Tudo, e contigo?”

Não poderia ter respondido nenhuma outra coisa. É lógico que não estava tudo bem, mas a dissimulação sempre esteve no cerne da pauta. O tipo de diálogo educadamente introdutório, porém no caso, educadamente conclusivo, uma vez que não havia mais o que dizer. Da minha parte havia. Da minha sempre parece haver.

“Ah!”

Um “ah” que poderia ter antecedido um “que alivio, lembrei de alguma coisa que posso falar que não deixe minha total ausência de vontade de falar contigo mais amena”. Teria sido, no mínimo, mais sincero. Mas não.

- “Ah, já entregou o teu trabalho de conclusão?”

Sim, já o entreguei, porém neste momento tu quem pareces me entregar o teu trabalho de conclusão. Pensei, mas calei.

- “E a banca, tem data?”
- “Legal então”.


Eu só conseguia pensar nesse momento o que aconteceria se eu pedisse para ir mais rápido com isso, porque aquilo estava de fato machucando.

- “Vai dar tudo certo, tu és inteligente, vais tirar de letra”.

Se tirar de letra fosse sinônimo de inteligência eu devo ser tão astuta quanto uma ameba. Sim, neste momento eu descobri como uma ameba se sente. Porque eu simplesmente não consigo lidar com isso. Calei, claro.

“Então está bem, vou desligar agora, tenho que voltar aqui para meu trabalho. Nos falamos, quero saber como foi tudo, me liga.”


Sim claro. Já que tivestes mesmo que telefonar, achou estranho fazê-lo sem falar minimamente comigo. Mesmo que embora eu preferisse não carregar na minha memória um diálogo mortalmente forçado entre nós, a ponto de ter conseguido ouvir do outro lado da linha o estrondo da força que fizestes, tentando arrancar do vácuo algumas palavras vazias em direção a minha pessoa.

Preferia que tivesses me preservado um mínimo de dignidade em troca da tua cordialidade fatal. Preferia ter ouvido que não, de fato não queres falar comigo, porque simplesmente não tem nada para me dizer. Preferia ainda, que não o tivesses dito, preferia o teu silêncio.

Sim, volte para seu trabalho enquanto eu tento catar os pedaços de mim que voaram longe depois dessa e volte para sua nova vida sem mim, já que para ti isso é possível. Para mim talvez nunca seja. Por mais distância de ti que eu queira. Apenas não consigo fazer com que meu coração beba da mesma fonte de indiferença que o teu bebeu.

Duas estranhas.
Devastador.