Numa fila de caixa de padaria, uma senhora velhinha a minha frente deixa cair boa parte dos produtos que tentava equilibrar nos braços. Antes mesmo de virar-se para o chão, eu em minha habilidade juvenil já havia os juntado, lhe oferecendo-os de volta com um sorriso pueril. Ela me olha nos olhos e levantando as sobracelhas, e me diz:

“Mas veja só!”

Eu a reconheço, minha ex-professora de matemática do segundo grau.

“Não me diga, deixe-me lembrar. São mais de 30 anos lecionando... espere...”

Olhou para dentro de si, à esquerda, para cima, buscando-me na memória em algum lugar que sabia onde encontrar. Abriu-me um sorriso benevolente, uma mescla entre ternura e puxão de orelha, e bradou confiante:

“Manuela! Manuela Marques de Souza. Classe do fundo. Cheia de idéias próprias. Não poderia me esquecer”.

Abertamente brota-me uma risada solta, dividida entre afeição e concordância, como se instantaneamente eu tivesse voltado a me tornar aquela adolescente cheias de devaneios e divagações do fundão, ao ser repreendida pela professora.

“Te dei algum trabalho, não é?”
“Algum trabalho é modéstia tua”

Conversamos e demos algumas risadas. Ao voltar para casa, eu ainda regressiva e adolescente, peguei-me questionando se talvez muitos outros, senão todos dos meus professores de matemática, se lembram de mim. Desde a primária idade escolar, no momento em que fui introduzida aos números, até meu ultimo contato com uma aula de matemática, já na fase pré-vestibular, quando jurei adeus aos cálculos de uma vez por todas.

Lembro-me no período de infância, das tardes de sábado em que era obrigada a ficar trancada no meu quarto decorando tabuadas, e confesso que até hoje eu não decorei. Do maldito ábaco que meu pai certa vez me trouxe de viagem, o qual recebi em meio a protestos, sem entender o porquê ele não tinha me trazido o estojo super-mega-ultra completo de lápis de cor. Sobre o ábaco, ele mesmo se arrependeu ao constatar que tentar me explicar somas e subtrações por ali era tão útil quanto tentar ensinar um canário a dançar tango. Lembro-me do meu suspiro profundo a cada início de um interminável período de 50 minutos, que mais parecia assassinar meu eu-lírico com laminas de chatice do que me ensinar oTeorema de Pitágoras .

Estava dentro da ordem do impossível para mim assistir passivamente uma aula de matemática sem desenhar, conversar, trocar bilhetinhos, ouvir, comentar ou escrever músicas, fazer imitações hilárias , saber sobre o final de semana alheio, ou tentar decifrar se foi de fato proposital a incrível concordância do filme “O Mágico de Oz” com o disco do “Dark Side of the Moon” do Pink Floyd. Um terror para meus professores. Advertências, idas para fora da sala de aula, interregotorios no SOE, reuniões de professores, sentenças de postura em sala de aula.. Eu não conseguia assistir a uma aula de matemática. Não bastante, eu não ia mal nas provas, o que parecia ser ainda mais imperdoável, uma vez que barrava dos docentes do ABC do xyz matemático aquilo que certamente seria vivido vingativamente como um prazer orgásmico: me devolverem uma prova com um zero geometricamente redondo.

Fui convencida que meu total desinteresse pelo assunto, sempre fora uma grande dificuldade com a lógica. “Ela tem uma mente artística, não dá pra matemática” ou “ela tem uma capacidade de abstração inversamente proporcional à capacidade lógica” consistiram em algumas limitadas definições fatídicas da minha relutância com a irredutibilidade dos números.

De fato, pessoas com inclinações abstrativas apanham mais para aprender a lógica formal, não por incapacidade dialética, mas pela dificuldade de encontrarem significado em manipular números e símbolos de maneira mecânica, a partir de regras intraduzíveis e que levem sempre aos mesmos resultados.

Hoje consigo entender o que me deixava a matemática tão desinteressante. A própria objetividade indiscutível de um resultado. Uma conta que se estendia de um lado até o outro da folha, chegava a um número final incontestavelmente idêntico. Sempre. Sem questionamentos, sem dúvidas, sem atalhos ou desvios. Sem dupla-face, sem contradições, pré-definido. Se não fosse aquele, o resultado estaria errado. Não à toa, eu fui fazer Psicologia.

Assim eu pude comprovar que 1 +1 não necessariamente resulta em 2.

O 1 + 1 pode ser igual à zero. Pode ser igual à -1, ou -2. Pode adoecer e fracionar-se resultando em 1/1. Pode ainda gerar um outro 1, resultando em 3, ou mais. Pode fusionar-se, reduzindo-se a apenas 1. E se tiver sorte, pode somar tanto que se tornará capaz de resultar no infinito. Enquanto durar.

4 comentários:

  1. Bela analogia poética da matemática da vida.
    Beijos³

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  2. Oi Manú!!

    Adorei ter te conhecido e agora ter conhecido o teu blog. Resolvi vir conferir, confesso que me surpreendi. Tu é uma ótima escritora, superou minhas expectativas. Vou virar leitor assíduo. Beijão!!!

    Rafa

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  3. OI Manú!!

    Descobri agora, só agora teu blog... Muito legal o jeito que escreves!! Eu mesmo nao tenho intimidades com números e quase morri pra passar em estatística na Faculdade. RSRSSRS um mal ou um bem em comum? nao sei...

    se quiser espiar meu blog opuspsicologia.blogspot.com. Eu queria ser seu seguidor, mas acho q vc n quis essa opçao... Abraços!

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