Nua e Crua





“Enfim só.” Disse para mim mesma, ao chegar em casa à noite depois da aula, largar a bolsa em cima do sofá, me desfazer do salto e descer do pedestal. O ato de arrancar a roupa e entrar no banho chega a ser agressivo neste momento. É ali, no banho do fim do dia que a vida começa. Banho é simbólico. Começa no ato de despir-se, desfazer-se das vestes que elegemos a partir do código de civilidade. Se não existissem outros, não nos vestiríamos (no conceito objetivo ou subjetivo da palavra).

Noutro termo, ali posso relaxar ao ponto de ser mulher. Posso desconstruir, criar, cantar conforme a minha música. Posso ter todos os respingos de euforia e outros tantos de mágoa. Posso ter um arsenal desnecessário (mas fundamental) de hidrantes, cremes, shampoos e sabonetes de estrelinhas que se liquefazem em contato com a água e toalhas com cheiro de jasmim. Não preciso dirigir bem, não preciso provar que minhas coxas não invalidam meu cérebro, nem disfarçar que eu acho o caminho sozinha, nem que eu sou mais esperta, ou mais rápida, ou menos mole. Posso ser feliz sem justificativas. Posso ser triste sem fingir na hora de rir.

Isso aqui é “vida real”, penso. O que quero pra vida ainda não esta pronto para mulheres. No mundo, mulher tem que ter colhões, e o resto é falácia feminista. O dia em que deixarmos de queimar sutiã para fixar a morada no território que ansiamos possuir, eu mudo de idéia. O dia em que pararmos de receber adjetivos e abordagens execráveis pelas ruas, qual se fossemos reprodutoras potenciais desfilando pela selva, eu repenso. No dia em que pararmos de comemorar um dia da mulher e nossos sabonetes de estrelinhas, seios, glúteos e lombares não anularem no espectro alheio nossas competências intelectuais, talvez tenhamos algum progresso. Por enquanto, tem que ser macho mesmo.

Fingimos o dia inteiro, ambos os sexos. Olhe em volta, olhe no espelho. Por que nos olhamos no espelho diariamente? O que adotamos como recurso de traje, trejeito ou tragédia nada fala sobre quem somos, mas sobre quem queremos que os outros pensem que somos. E usamos para cada situação diferente uma identidade de cima desse palco chamado “vida lá fora”, que nada mais é do que uma peça sem diretriz, mal escrita, composta por uma platéia recriminadora e baldia chamada sociedade.

Mas vai fazer análise. Cai a máscara de gênero, de estado civil, RG, profissional, de boa mãe, de bom samaritano, cai a pose mesmo. E o pior: nem mais se atrelar em racionalidade defensiva se pode, tem que sentir a coisa a fórceps. O que resta? Tem que ter tanto peito pra encarar o que resta, que eu preciso da minha analista ali segurando a minha mão. Progresso, porque já admito que precise segurar a mão de alguém (por favor, isso é uma metáfora). Com a persona escoradinha ali ao lado do divã, pra qualquer coisa, só por garantia.

“É preciso coragem para ser você mesma”, me diz meu amigo Gabito. Porra, e como! Tem máscaras que de tão acopladas à face já moldaram-se aos nossos rostos. Essas tão seguras, tão mais fáceis, tão conhecidas, essas que carregam um pedaço da epiderme quando arrancadas. E tem que ser assim, violentamente. Tem que querer, fazer, e ser, violentamente. O mundo pertence aos que se arriscam.

Mas deve se estar preparado para que, ainda em carne viva, as pedras da “exposição” caiam às pencas em vossos telhados. Dá licença? É proibido chorar em ambientes fechados? É proibido sentir ou só assumir que se sente? Quando viveremos a espontaneidade no prestígio da palavra? Quando a hipocrisia moral dará lugar a ética? Quando seremos livres o bastante para sermos, e pronto? E quem você pensa que é afinal? Acha que engana alguém?

A noite de Eros






Pela forma como um homem pode contornar o corpo de uma mulher sem nem ao menos tocá-la. Através do olhar do desejo precoce e tardio, sedento por consagrar a exploração de sua essência feminina, ao inspirá-la e absorve-la em pele, deitada sobre os cúmplices lençóis de um quarto.

Sob domínio desse olhar sem fala, mas rico em todas as sentenças, sacramentado como a promessa de devoção ao deleite compartilhado, todos os átomos que compõem o corpo de uma mulher se abrem.

Sob ordem da luxúria, ela se oferta à posse que polariza entre rijeza e suavidade. Esta que lhe rastreia segredos, irrigado em provocações majestosas como a sugestão dos céus aos dotados de asas.

Sua silhueta agora é pulsão em feitio, delineada e moldada por ele, enquanto renasce de sua própria entrega. A entrega a este, que ela quer consumir a cada gota de suor, lhe confiando toda exclamação em vibrato, lhe revelando cobiça em melodia ao pé do ouvido, entre volições da fricção contra a pele tenra, da aspereza da barba não feita contra a delicadeza da face.

E ele a contempla, em toda singeleza, em cada detalhe, por anseio violento em querer vir. Assim, ele a toma. A partir de então o corpo dele é sua nova casa, a alma dele seu novo endereço, polarizado enquanto ela se perde na própria moradia. Até que em ápice, na ebulição dos sentidos e sentimentos, ela vê brotar na flor da própria pele a explosão do fastígio, lhe vestindo o nu de prazer e pétalas, a todo e cada canto de espírito.
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Não desceu. Está aqui, até agora entalado. Só pode ser porque é verdade. Mania mais intolerável essa minha de ter nove motivos para sorrir, e me atrelar ao décimo, o da lágrima. O que me faz lembrar que os momentos em que sou feliz são os que, por algum motivo mais forte, eu esqueço que sou triste.

Obrigada por ter ruído meu dia. E obrigada por ter me feito sentir, mais uma vez. Bastou aquilo, para que eu desmanchasse meu sorriso e virasse mortal de novo, a ponto de achar alívio nessa condição. Teu par de olhos verde-cinza desesperançados pela janela só puxaram a tampa do meu ralo. E veio o esgoto.

Só um vidro dividia teus olhos dos meus. Um vidro fino, que dividia universos. E ares. O meu, condicionado, o teu denso, bem mais pesado do que você. Não, não tenho trocado. Mas tu tinhas, e trocastes comigo apenas pelo olhar. E nem mesmo tesouros escondidos por mares jamais navegados pagariam o preço. Mas como não sabes ler, seguirás tendo a minha falta de trocado como mais um olhar indiferente, mais um carro que se vai, mais um pouco do mundo que te rouba. Te rouba de decência, te rouba o que tu não tens, nem nunca teve, e me mata também um pouco imaginar que talvez nunca terás.

Se eu falasse o que quer que seja, eu bem sei que só se ouve a parte do “não” quando se tem fome. Só se guarda a cena do carro indo embora quando a solidão coloca a existência no lugar do crime. Que só se consegue enxergar aquele vidro quando se pensa em sonhar. Temos isso em comum. Com a diferença de que eu sinto o peso do real podendo comparar com a ausência dele, e você não. Tão triste, que chega a ser mais triste do que eu. Então calei. E chorei, minha criança.

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And the Oscar goes to...




Só porque teu alto nível de convencimento te induz à deduções distorcidamente conclusivas, isto não significa que elas estejam de acordo com a verdade. Aliás, se existisse uma escala valorativa em grau de “se-achismo”, tua pontuação estaria elevada a ponto de te garantir uma estatueta na cerimônia de pessoa mais convencida do ano.

Resolvi que vou desfazer essa tua conclusão errônea de que estou apaixonada por ti. E decidi escrever antes que tu me exijas argumentos de corpo presente. Isso porque se eu te falar pessoalmente, no mínimo de tempo que o Sistema Nervoso Central do meu encéfalo leva para fazer com que meus lábios, pulmões e cordas vocais trabalhem conjuntamente, traduzindo meu pensamento pela emissão de sons em forma de linguagem, tu dirás que eu demorei na resposta. E caso eu não ache de imediato uma ou outra palavra, tu dirás que eu gaguejei, o que (para ti) confirmará esta tua afirmação infundada!

Pois bem. Não é porque de uma hora para outra eu descobri que existem mais de 63 tonalidades diferentes de cores no trajeto São Leopoldo/Novo Hamburgo, e tenha me surpreendido comigo mesma contando cores de caminhos que, em geral, eu nunca tinha prestado atenção, que eu esteja apaixonada por ti. Isso pode ser apenas tédio, sabia?

Não é porque toda santa letra de canção, me faz lembrar de alguma parte de ti em sua estrofe, pausa, vírgula, verso ou rima. Nem porque toda vez que eu tenha cantado, pensado em escrever ou gravar alguma canção nos últimos tempos, onde teu nome insista em aparecer sugestivamente como título que eu esteja apaixonada por ti. Eu posso apenas ter apreço por música brega. Escutou?

Se eu fico te perguntando o que tu tem a cada silêncio ou tentando interpretar qual será a decodificação de um suposto sentido oculto nas palavras “alô”, “olá”, “oi” ou “sou eu”, que tu insistes em emitir de forma variada cada vez ao telefone (porque raios tu não opta por uma só maneira de cumprimento de uma vez por todas?), que eu esteja apaixonada por ti. Eu posso apenas ter TOC ou ser paranóide! Capiche?

Muito menos é porque o teu toque, a sensação da tua pele de encontro com a minha, ou teu cheiro, ou teu sorriso, ou teu abraço, ou teu beijo, ou qualquer coisa que tu faças que me passem pelos sentidos, seja me entorpecendo ou me aguçando os mesmos, me fazendo entender finalmente o porque toda alma precisa ter um corpo, que eu esteja apaixonada por ti, eu posso apenas ser uma pessoa fixada na busca pelo conhecimento e centrada demais na questão filosófica clássica mente-corpo. Pegou?

Também não é porque tu virou uma espécie de parâmetro masculino, que dividiu o universo do outro gênero entre os menos que tu, os perto de ti, e os lamentavelmente abaixo de ti. Isso definitivamente, não tem nada a ver com estar apaixonada. E nem é porque tu estas acima do bem e do mal, isso nem é grande mérito, se tu parar pra pensar no tanto que tem de babaca no mundo.

E indo além, também não é porque tua ausência me faz sentir um vazio físico, como se fosse fome, só que mais pra cima e mais pra esquerda, nem porque tua presença me faz esquecer que existe fome no planeta, ou qualquer outra coisa que não sejam teus olhos, tua boca, tua respiração. Muito menos é pela forma como tu me desfaz, me abre, me arranca desse inferno gelado que eu me enfio as vezes com tanta intensidade que me derrete, que eu esteja apaixonada por ti! Ta me ouvindo?

Eu poderia seguir uma lista argumentativa sem fim aqui, mas acho que já te apresentei afirmações perfeitamente ponderáveis para te provar que nada disso significa paixão. Eu não estou apaixonada por ti! Ficou claro? Hein?

E agora passa esse Oscar pra cá!

Adulterados




Não posso nem descrever o quanto essa guria me irrita. Mas que criaturinha mais metida! Esconde-se atrás de tanta vaidade toda sua insegurança. Além de ser arrogante, presunçosa e mais nariz empinado do que.... Do que... Do que.... (pera que vou procurar no google um bom complemento de expressão popular pra isso. Xiii, não tem...) ahm... er... tá bem, do que eu!

Já pararam pra pensar que na imensa maioria dos casos em que implicamos com alguém sem um motivo aparente, estamos apenas projetando nossas próprias desaprovações? O outro-espelho, o outro depositário daquilo que sou e não queria ser, o outro meu alvo de apoio e desvio. Quem nunca foi com a cara de alguém (o que é não ir com a “cara” de alguém afinal?) e se surpreendeu depois, que atire a primeira pedra.

Todos fazemos. É valido, a nível de crescimento pessoal, sempre se estar atento as críticas que depositamos nos outros, visto que aqui não se trata de estudar a mente humana e traçar um diagnóstico com propriedade. Se somos capazes de identificar no outro via senso comum, a palavra resume o processo. Identificar deriva  de identidade. E identidade provém de idêntico. É a partir da realidade externa que as pessoas constituem este noção subjetiva de um “eu” separado dos demais. Ao longo da infância, da educação, das vivências singulares, de como foram significadas as experiências reais ou imaginárias de cada um, que vamos construindo esta idéia (própria) de identidade.

Não é difícil perceber, visto que não nascemos dotados de visão raio X, que o dedo em riste que voltamos ao outro está apontado a nossa própria testa. Já que ninguém esta lendo nossos pensamentos, confessemos na cumplicidade do anonimato (de vocês, eu estou confessando abertamente), quantas vezes não julgamos alguém sem conhecer? Quantas vezes escutamos um lado de uma história, sendo que toda história tem no mínimo três lados, e mesmo assim caímos na ignorância de tomarmos partido-cego? Quantas vezes não caímos na armadilha reducionista de limitar o universo inteiro que é cada ser humano, na definição de um adjetivo?

Duas coisas incomodam. O idêntico e o oposto. O idêntico, por ser aquilo que sou. E o oposto por ser aquilo que gostaria de ser. O que não tem nada a ver com a gente, não incomoda. Mas incômodo é sempre bem vindo. A areia que entra na ostra é um baita incômodo, mas se assim não fosse, não existiram pérolas.

Concordo que as vezes cansamos de nadar em oceanos de ostras vazias. Às vezes somos grãos de areia, dentro destas ostras, e elas não sabem o que fazer com a gente. E uma boa existência sempre vai incomodar. O colega de trabalho que quer te passar a perna, a menina que te inveja, o amigo da onça que quer te ferrar, aquela pessoa que nem te conhece e te crucifica sem o mínimo de propriocepção para discernir o quanto fala dela mesma.

Assim caminha a humanidade, hora sendo ostra, hora areia, pérola ou oceano. Com alguma coisa em comum. O traço humano que nos financia como fragmentos da mesma espécie. Tenho mania de imaginar todas as pessoas quando crianças. É um exercício que aconselho, pois fica mais fácil entender sobre a primitividade humana, além de ser divertido.

Aos poucos, vamos percebendo quem é aquela criança que precisa de atenção porque não teve, qual é a insegura, zombada e excluída na escola, a emburrada num canto, a que não teve o carinho que deveria ter, aquela que não foi respeitada em sua condição de infante e cobrada a ter recursos que ainda não possuía, a que fica procurando um rosto conhecido na apresentação de final de ano e não encontra, a que morde o coleguinha, a que tem medo do escuro, a que só precisa de um colo, uma historinha pra dormir e um beijo de boa noite.

Às vezes penso que o fascínio que temos com crianças, é porque elas nos lembram do tanto que o mundo tratou de nos corromper e o do quanto deixamos que ele o faça. Trocamos sonhos por descrença, pureza por desconfiança, entusiasmo por conformismo, peito aberto por auto-preservação furada, espontaneidade pela norma, fantasia pelas máscaras identitárias.

Abdicamos das nossas perguntas, dos nossos porquês, de ver o mundo como um espaço potencialmente novo a ser descoberto e criamos a falsa idéia de que crescer seria constatar que mundo é essa porcaria aí mesmo. Mas mesmo corrompidas, quebradas ou cheias de cicatrizes, somos todos ainda crianças. Crianças que trocaram sua capacidade de imaginação, suas bailarinas ou super-heróis, por essa fantasia chatinha, sem cor e sem graça de adultos.

Feliz dia das crianças procês!

Cheios. De falta.




“É que ele não me completa”.


A frase saiu de uma amiga portadora de vários atributos. Bonita, inteligente, sensível, romântica, são alguns deles. Após eu ter questionado o porquê do termino de sua mais recente relação – a quarta esse ano, e estamos em outubro – ela me responde com essa afirmação, com uma certeza tão inquestionável que só me restou dizer: “então tá.”


Guardem a frase. Agora levantem a blusa, e olhem para própria barriga (se estiverem num local público, podem apenas imaginar a própria barriga). O que vocês vêem? Salvo se forem o caso daquela moça que fez tantas plásticas que perdeu o seu, todos poderão constatar que ali reside um umbigo. Quem tem cicatriz de piercing infeccionado, pode ter dois “bigos” também. Mas um dia foi um.


Como nós, ligados um no outro, via cordão umbilical, um dia nos fomos complementados por um outro alguém. Então, se você tem umbigo no meio do tronco, já carrega a marca da falta. Lembre disso, cada vez que olhar novamente para o seu. Inerente à condição humana de existência no mundo, é a falta que nos faz permanecer em busca, que por sua vez, nos garante a condição de movimento.


Como nós vamos lidar com isso, com o quê vamos tentar preenchê-la, e qual caminho vamos perseguir, vão  dos valores pessoais de cada pessoa. Uns querem uma bolsa Luis Vuitton, outros uma Ferrari, alguns um marido de extensa conta bancária, um emprego de altíssima remuneração, um corpo perfeito, uma viagem longa pela Europa, o conhecimento, a cura do câncer, o amor, o cargo de presidente da república, cada um no seu redondo. Quem estiver plenamente satisfeito com o que tem, pode fazer a última busca. Escolher o seu caixão, e escrever a próprio punho em sua futura lápide a sentença de morte: “sou pleno”. Basta deitar e esperar, visto que não há mais motivos para viver.


Afinal, é a busca que dá sentido à vida. É o combustível que nos coloca em movimento. E viver é estar em movimento. Agora, esperar que alguém dê conta de preencher essa falta, já é sacanagem. Justificada, porque a gente se atrapalha ali na paixão. Paixão é uma fase em que a percepção da realidade encontra-se tão alterada, que podemos (quase) acreditar que estamos plenos. Que a dada pessoa é o bombril mil e uma identidades que faltava a essa nossa louça suja, que agora sim, finalmente, encontramos o remendo perfeito para esse inexistente cordão umbilical que o vazio na barriga insiste em lembrar que falta.


Se existir de fato um sentimento real (posto que paixão é fase), inevitavelmente, vai chegar o momento de restar o amor. E a falta. O casal pode achar estratégias, decidindo ter filhos, vai saber, dizem que é isso que completa né? Acontece que se ocupam tanto na função de pais que a falta perde parte do peso, não se tem muito tempo para as próprias questões existenciais, e assim vai se burlando esse vazio. Até que os filhos crescem, ou não crescem nunca, desimporta, uma hora a falta volta.


Iniciar uma relação esperando se sentir plenamente completo é mais furada que meia de mendigo. Pra quem estiver apaixonado, isso pode soar absurdo, então aconselho que volte a ler depois que a paixão passar. Já posso ouvir: “E daí, tu sugeres o quê? Se nunca vai acabar também devo ir comprar meu caixão?”. Calminha. A falta é ótima. Não é agradável de ter, mas sem ela, você nem estaria me lendo aqui agora. Inclusive não leria nada, visto que nem teria aprendido a ler. Pra que aprender (o que quer que seja) se não te falta nada?


O ponto deste texto não está em sugerir a alguém cortar os pulsos, mas em ressaltar a importância de se ter metas, tendo consciência que o caminho tem um valor fundamentalmente mais importante do que a chegada. Se quisermos sair de um lugar ao outro, podemos agilizar o pouso entrando num trem-bala. Mas estaremos renunciando à universos inteiros que vivenciaríamos caso viajássemos prestando atenção em cada passo.


Mais uma vez, entramos na dilatação do tempo, sábio Einstein. Perseguir, sim. Olhar para o horizonte, sempre. Mas jamais desmerecer a importância do tempo presente. A falta veio e vai conosco, seja onde estivermos. É importante aprender como usá-la ao próprio favor, e não contra si. E isso inclui assumi-la como condição, sem colocar como dever do outro resolve-la, correndo o risco de dar um tiro no próprio pé. Quando estivermos andando na mesma estrada, ao lado de outros umbigos, será incomparavelmente mais enriquecedor não centralizar o olhar só no próprio.



Segue a confissão do tempo  
Na imensidão desta noite cerrada
Fala pelas vozes do Vento
Nos calvários por onde ele curva
Uiva as  palavras que engulo em seco
Abre caminho em meio ao escuro
Circula teus temores e prantos
Retornando a mim, de onde ele vem

Pequenas fagulhas de eternidade
Preenchem a tua ausência
E as árvores secas
Ensinam-me sobre estrelas e fados
Na esperança distante da cidade que congela

Hoje escrevi nas paredes palavras não ditas
O que outrora ardia, congela
Na espera de habitar por esses mundos
Em que o luar dos dias aventurados
Consentem ao sol rasgar a aurora da noite

Abro esta janela a fitar o horizonte
Enquanto o vento me lambe o rosto
E a noite me beija os lábios
Meu olhos trafegam para longe do peito
Lá por onde transitam as novas eras
Que me trazem novos ventos

Abelhas...




“Era uma vez uma raposa e uma cegonha, que pareciam estabelecer uma relação de amizade. Um dia a raposa convidou a cegonha para jantar. Querendo pregar uma peça na outra, serviu sopa num prato raso. Claro que a raposa tomou toda a sua sopa sem o menor problema, mas a cegonha com seu bico comprido não pode tomar nada, e voltou para casa morta de fome. A raposa fingiu que estava preocupada, perguntou se a sopa não agradou a cegonha, mas a cegonha não disse nada. A cegonha agradeceu muito a gentileza da raposa e disse que fazia questão de retribuir o jantar no dia seguinte. Assim que chegou, a raposa se sentou morrendo de fome, curiosa para ver as delícias que a outra ia servir. O jantar veio para a mesa numa jarra alta, de gargalo estreito, onde a cegonha podia beber sem o menor problema. A raposa, só teve uma saída: lamber as gotinhas de sopa que escorriam pelo lado de fora da jarra, e voltou para casa faminta”.



Quando algo perturbador acontece, gerando sofrimento ao indivíduo, a sua imaturidade psicológica se sente ameaçada. Vem então à tona, oriundo de registros desconhecidos armazenados em seu inconsciente, sob a ordem do desejo, aquela voz que lhe exige a reparação, traduzindo-se (mal e parcamente) na aniquilação do seu opositor.

Necessariamente neurótico, o indivíduo vingativo é um vitimado, e dominado pela própria sede de poder. Ora, se ambiciona, é porque lhe falta, e se a falta se volta ao outro, é porque inveja. Inveja todos aqueles que estiverem em melhores situações psicológicas que a dele. A perversão aqui se dá, quando fingem relações, tentando se aproximar, e manipular os alvos da própria inveja. Isto até que se ergam mostrando os caninos com os primitivos e escassos recursos da tirania e insensatez.

Então, meu caro enfermo de voz pseudo trovejante (sim, o texto tem destinatário), preste atenção. Se eu, que sou eu, me encontro necessariamente, tal como provam os fatos, em uma condição psicológica melhor que a tua, a ponto de provocar-lhe tamanha inquietação, fixação, tentativas frustradas de aniquilamento, e na falta de fios reais, apelar para acusações infundadas, num pobre anseio de me ferir, eu lamento muito te informar, mas tu deves estar bem ferrado.

Desculpe-me se te deixo dando soquinhos no ar, mas aí já entra a minha própria perversão, é divertido para mim vê-lo fazendo. Mas como perdão é virtude dos fortes, eu te perdôo, e resolvi te alertar aqui, sobre ti mesmo, vide o presente texto.

Vou esperar tu ires buscar um pires (talvez um balde) para pingar a babinha espumosa da tua raiva aí, vai lá... Respira... Tá melhor? Ok, segue o barco, eu sei que deve estar difícil, mas tente ler isto atentamente:
“Ao armar-se de calúnia e de outros mecanismos de perseguição, contra aquele a quem odeia, está realizando uma luta inconsciente contra si mesmo. (...)Além da inferioridade moral que tipifica o vingador, o seu primarismo emocional elabora razões ponderadas que são arquitetadas pala mente em desalinho, para justificar o prosseguimento da façanha.”

Então pensa comigo, e vê se te faz algum sentido. Eu imagino o quanto que a minha existência te seja ameaçadora e irritante. E sim, confesso que a minha pequenez faz com isso me envaideça. Eu, nessa minha busca incessante por amor incondicional desde que me cortaram o cordão umbilical e me individualizaram no mundo, sempre adorei as manifestações ambivalentes de amor e o ódio, é a indiferença que me maltrata. Mas se neste caso, nem isso iria me ferir, é porque não tem mais jeito de tu entrares, não adianta ficar querendo fazer estrondo na porta. Estes aliás, me incomodam assim como aqueles insetinhos de banana. Da uma balançadinha do ar, e pronto, nem mover-se para matar tu te moves porque não vale a pena. Então, qual é a lógica? Exato, muito bom, nenhuma.

Tem pessoas que nasceram para liberdade e outras para escravidão. Mas lembra-te, que nenhuma grade, amarra, ou espora pode tirar a liberdade de um homem. Tu podes ser livre, mesmo sendo pegasus atado ao celeiro, como Freud dizia se sentir. Posto isso, eu então te lanço a seguinte pergunta: porque será que a abelha perde a vida? Insetos... Ah, pobres insetos. Leões e abelhas. Então, novamente, pensa comigo. Que tal ir amar alguém (não eu)? Que tal ir passear ao por do sol, ler um livro, balançar na rede, brincar com um cãozinho, buscar a poesia das auras, admirar as formas puras, tomar chuva, olhar as estrelas, apaixonar-se? Que tal existir? Sério, tem coisas bem mais legais do que eu, e do que teu mundinho, no mundo lá fora.

Mas eu bem sei, que nada adiantam estas palavras para um homem encarcerado em si mesmo. Ele já é escravo. Mas se perdão é devolver ao outro o que é dele, não tenho outra escolha senão te devolver à própria senzala. Torço por ti. Um abraço, assinado, pela frente, e de peito aberto, como se faz por aqui, no povo do qual eu venho.