Anjos Cadentes







Já te deleitastes com o sabor do medo?
Se sim, que gosto ele tem?
Já ofegastes com as laminas lhe correndo nas veias?


Quem prometeu, afinal não tem culpa
Nem quem ainda crê
E ambos sentenciam-se a Renúncia.


Tal como o anjo que amputa as próprias asas
Seja por vontade, indução ou covardia
Desmembrado do paraíso, se torna


Nem maçã, nem serpente
Mas a desesperança da Gula
Somente por esta mordida
Somente pela saliva que escorre
Apenas por esta noite


Se não cruzei a linha da luz
Se não demorei-me na sombra
Fui salva.
Mas engana-te
Foram outras mãos


Se o horror fraudar-me a fala
Ou a fraqueza entorpecer-me o movimento
Por favor, não insista. Nem me salve.
Entre ser salvo no cárcere da dívida
Escolho a liberdade do abismo


Apenas voe.


...

....

.......

Eu e elas....todas de mim!





“Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim
Dentro de mim mora um anjo
Que tem a boca pintada
Que tem as unhas pintadas
Que tem as asas pintadas
Que passa horas à fio
No espelho do toucador
Dentro de mim mora um anjo
Que me sufoca de amor
Dentro de mim mora um anjo
Montado sobre um cavalo
Que ele sangra de espora
Ele é meu lado de dentro
Eu sou seu lado de fora
Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim
Dentro de mim mora um anjo
Que arrasta suas medalhas
E que batuca pandeiro
Que me prendeu em seus laços
Mas que é meu prisioneiro”

Composição: Sueli Costa/Cacaso


Quem sou eu?


Sim, estou perguntando. Te arrisca? Até onde eu posso pensar, “eu” é o que não é “tu”, mas para vós eu já serei "tu". E "eu", nem o “eles”, nem o “nós” jamais serão . Nós (primeira pessoa do plural), e nós (emaranhado), tanto faz, quase a mesma coisa, mas ainda assim, não “eu”. Confuso? Pra mim sim. 

Perguntei para várias pessoas. Perguntei para amigos que em quem confio. Perguntei a familiares. Para alguns leitores que eu nunca vi pessoalmente, mas que comigo trocam. Perguntei ainda a pessoas que eu sei que não vão com a minha cara, e outra com quem eu nada tenho em comum. Ou tenho, quem sabe? De qualquer forma, sempre é bom ouvir no mínimo três lados. Vale pra tudo.

Alguns responderam falando de si.“Gosto de ti porque tu....” Gostar ou não de mim era irrelevante, queria saber quem sou, não o que esse quem evoca ou repele. Outros me teceram elogios, e um teve mais coragem para me dizer que me acha muito pretensiosa e parcial. Mesmo assim, referia-se a minha escrita. Não recebi nenhuma ofensa no face to face, uma lástima. Dizer que eu era brilhante ou genial, seria recebido com o mesmo impacto do que nomear-me como dentro (ou abaixo) da média.

Tudo isso ainda estaria na minha relação com o mundo, e não em quem eu sou. Mas nenhuma resposta foi igual. E esta foi a melhor informação que retirei do breve questionamento. Se nenhuma resposta foi igual, e se é impossível se distanciar da questão ao ponto de não falar minimamente de si mesmo (afinal de contas,  “tu – para mim – és...) e se nenhuma resposta encontrou correspondência comum, a única conclusão que me resta é que eu sou uma para cada pessoa. Portanto, tudo que sou para alguém, sou para alguém. Não é quem sou eu.

Alguns sabiamente anteveram, respondendo que era impossível responder. Uma resposta crua, sem aprofundamento, talvez tenha sido o mais perto que um outro tenha chego de um eu – o meu, no caso. Inconstante e em busca”. Foi do Marcello. Ele não  disse artista, atleta, pirada, romântica, disléxica, paranoide, cantora, narcísica, o que consta na tua certidão de nascimento, ou o que dirá o teu diploma.  Nenhuma definição. Ele foi o mais longe de si mesmo para responder, afinal tentou voltar-se a pergunta e abriu.




(…)


-         O que você ama nos outros? Me pergunta meu amigo “Verme”, em relação ao meus outros.
-         Eu amo a possibilidade. Do ser e desfazer-se, do não ser e recriar-se.
-         O brincar com os papéis?
-         O que seria viver no mundo senão brincar com papéis?
-         Nada além do viver no mundo. Quem precisa de face?

(…)



Tudo o que sou, é o que acredito que sou. Tudo que eu posso parecer, ou vir a ser, eu sou a partir do meu corpo, meu eu-pele, e de como ele interage no mundo. Ou ainda da minha consciência, do que ela pensa que estou fazendo, ou do que pensa meu eu.  Angustiante? Sim. Retire a identidade de um homem, e veja como ele se sai.

Quem sou eu?


Jamais poderei escrever. Posso escrever o que não sou. Não sou o que eu mostro ser, nem o que se vê. Não sou aquilo que eu posso pensar. E se não posso pensar, não posso traduzir. E se não posso traduzir, não posso escrever.



Eu sou... Eu-sinto... e eu moro no vento...
...
...
...

Ah! Eu sou Gaúcho!





         Os ventos possantes que sopram nas coxilhas distantes, nos pampas e até mesmo nos estádios de futebol mais importantes, Olímpico e Beira-Rio, onde as torcidas gremistas e coloradas fazem tremular as bandeiras verde, vermelha e amarela, exaltando num só coro o orgulho gaúcho, vêm com ainda mais entusiasmo em setembro. É neste mês que se comemora a Revolução Farroupilha, a revolta civil armada mais extensa em comarca nacional.


            Mas ao contrário do espírito brasileiro que se veste com as cores da pátria em copa de mundo, ou que vagamente recorda as origens comemorando carnaval em todo fevereiro, aqui nossa bandeira brande ao vento o ano inteiro. Eu já sei que vou arrumar encrenca com meus leitores fora de solo Rio Grandense, mas vejam bem, é fato que nosso orgulho tem vida dentro de cada coração gaúcho.


            Aqui, ao invés de cultuarmos traseiros em desfile de carnaval, maravilhamo-nos com os desfiles dos cavaleiros armados de bandeira e raça, em culto ao brasão de nossa “pátria”. Sim, vou radicalizar de vez agora, se é pra arranjar encrenca que não seja meia encrenca, que seja total. Isto porque o gaúcho é gaúcho antes de ser brasileiro. Nunca ouvi até hoje de um gaúcho que ele é brasileiro antes de ser gaúcho. Não quero desmerecer outras culturas, outros estados, isso seria estúpido da minha parte. Porém apenas os gaúchos entendem o significado deste orgulho.


            Nossa tradição vai ainda muito além do espaço geográfico e de indumentários, das tradicionais vestimentas, bombachas e vestidos de Prenda. Significa transmitir os valores que nossos antepassados nos legaram. Mas a transmissão de fatos culturais de um povo não consiste em qualquer forma de tradição? Sim. Mas cada grupo social tem sua própria escala de valores, o que diferencia os povos. Não estou aqui afirmando que temos mais ou menos valores que outros povos, mas existem peculiaridades que distinguem um povo do outro.


            E tradição gaúcha é o renascer de prestígios e glórias relacionadas a fatos épicos. É um culto à memória dos feitos de seu povo. Nasceu no campo, nos galpões e fez raiz em cada gene, sendo que trazemos no sangue e na alma, nos hábitos e em nossos valores a nossa honra. Fica minha singela homenagem à minha terra virtuosa, forte, aguerrida e brava. 




Agradecimento especial ao Rodrigo, autor dessa fotografia, e gaúcho. 
Isto resume. 

Casamento de opiniões. Ou divórcio de idéias.




(...)


-          Mas como assim tu nunca pensou em casar?

Me perguntou naquela histeria típica de mulher quando embesta. Mas com o detalhe de que eu era a mulher, e ele o homem.

- Assim, nunca.

- Mentira tua!

- Não é. Juro.

- Mas por que não?

- E porque sim?

- Ora, porque sim... Porque sim, ué. Para consolidar a tua relação. Para constituir uma família. Para compartilhar a vida com alguém, marido e mulher, esposo e esposa, estado civil.

- Não acho que compartilhar a vida com alguém significa ir gastar uma grana federal em uma simples festa, trocar alianças na frente de um padre e de um monte de gente e pronto, a mágica “do felizes para sempre” foi consolidada.

- Olha aqui. Primeiro. Se tu insistir em chamar novamente o dia do casamento de “uma simples festa”, não vai dar para a gente conversar. Segundo, não foi nada disso que eu disse, não é a cerimônia que vai fazer nada, a cerimônia é a simbologia disso tudo. E terceiro.... ah quer saber? Deixa pra lá.

- Começou, termina.

- Pra quê se tu vais negar?

- Agora fala.

- Bom, em terceiro eu acho que tu apenas afirmas isso porque é filha de pais separados, deve ter algum tipo de trauma de infância e criou a idéia de casamento não da certo.

- Meus pais se separaram quando eu tinha 13 anos, não é mais infância. Além do que, antes disso eu também nunca quis casar, nunca olhei para o futuro penando nisso.

- Mentira tua!

- Não é mentira. De pés juntos que não é.

- Tu nunca brincou de dia do casamento quando era pequena?

- Não.

- Nem em festa junina? Nunca quis ser a noiva?

- Se tinha pescaria, pra que eu iria querer ser a noiva? Aliás, por Deus que eu nunca entendi a graça daquilo.

- Por Deus digo eu! Tu já foi em algum casamento, certo?

- Claro que sim.

- E tu nunca chorou em um casamento?

- Já chorei sim.

- Há! Eu sabia!!!

- Mas não foi pelo casamento, foi por outro motivo. E ninguém viu.

- Mas que guriazinha. Bom, como tu nunca te casastes, e já foi em um casamento, o que tu fazes na hora em que a noiva vai jogar o buquê e ficam todas as gurias que ainda não se casaram atrás?

- Eu fico assistindo, adoro essa parte. Eu dou muita risada.

- Ta bom, eu tenho que concordar que é engraçado mesmo.

- É muito tri, é melhor do que luta livre.

- Ai,ai. Escuta aqui. Toda a mulher, toda a mulher, pensa ou já pensou em se casar.

- Pois então eu sou um homem que nasceu no corpo errado.

- É nada, tu é mulher. É inteira mulher, em cada detalhe!

- Então talvez as outras mulheres que sejam parte homens, visto que tu és e defende tanto o matrimônio. Aliás, veja a etimologia da palavra: matri mônio, domínio materno. Qualquer proximidade com a palavra demônio é mera coincidência.

- Não distorce a situação. Não inventa teorias absurdas para justificar a mentira que tu estas tentando me vender. Tu quer se casar, sim!

- Quero?

- Não quer?

- Não!

- Não acredito.

-Então tá bem.

- Como assim tá bem?

- Então não acredite, ué. Tua descrença não vai mudar minha opinião.

- Ok. Então me explica. Por quê. Porque tu não pensas em casar?

- Porque o casamento destrói uma relação. E não, não é trauma parental, não é medo de compromisso, não é desilusão amorosa. Eu acho que o casamento institui uma idéia de laço entre duas pessoas, como se as alianças nos seus dedos trabalhassem por si só. Uma idéia falsa de segurança e de permanência. Uma espécie inexistente de garantia. O casal deve conquistar-se mutuamente, dia após dia.

- Concordo. Mas os dois podem fazer isso estando casados.

- É bonito na imaginação, mas um tanto quanto utópico. O dia a dia vai consumindo algumas coisas. Pequenas manias, que eram tidas como engraçadinhas nos tempos de namoro podem se tornar insuportáveis. Trabalho, stress, contas para pagar, insatisfações pessoais, vazios existências, tudo isso acaba sendo compartilhado também, ou tu achas que só se partilha companheirismo, prazer e sorrisos?
Sem falar em sexo, não tem como a rotina não esfriar isso uma hora.

- Criatividade, minha cara. Inovação. Se é o lema central para os negócios, porque não levar para o casamento também, que não deixa de ser um? Afinal tem que se investir, trabalhar em equipe, dividir tarefas, aprender a ouvir, querer crescer junto, saber ceder, lidar com diferenças, saber gerenciar.

- Ah sim. Então nascem os filhos. Gerencie isso então, e um casamento ao mesmo tempo. Como se já não beirasse o abismo do desumano administrar um casamento, tem que gerenciar outras vidas por tempo indeterminado, sem direito a férias, demissão, devolução ou indenização. A não ser na separação, aí sim, entram direitos legais. A pensão alimentícia, a  divisão de bens e de cacos de coração restantes, um fica com a frustração e o outro fica com a sensação de fracasso. Até testemunha tem, que nem condenação: “Eu vos condeno, marido e mulher”. Não, muito obrigada, eu passo.

- Medrosa!

- Como assim?

- M-E-D-R-O-S-A!!!

- Por quê?

- Por que tu estás pensando no que de pior pode acontecer, para eliminar a chance de nascer em ti um desejo de tentar. Porque tu queres um amor para vida toda, e preferiu te convencer que isso não existe na vida real, só em Hollywood. Mas eu vou te dizer uma coisa. Felizes para sempre, realmente pode não existir. Agora duas pessoas, que se amam, resolvem ser fiéis uma à outra e construir a vida delas juntas, com altos e baixos, com risos e lágrimas, com noites e dias, invernos e verões, isso minha cara, isso existe sim.

- E porque isso tem que passar pelo casamento? Ou existe alguma lei que me proíba de ser fiel a uma pessoa, construir minha vida com ela, compartilhar a minha existência, e estar ali seja em tempestades ou calmarias?

- Hum!

-Hum!!

(depois de alguns momentos reflexivos de silêncio).

- Olha... Talvez tu tenhas razão. Talvez o casamento não seja esse bicho de sete cabeças que eu acho que é. Talvez possa dar certo.

- Tá maluca? Casar é firmar condenação à pena de morte de uma relação. E em comum acordo. Me convenceu!

Jogo de Xadrez





Sabe aquele tipo de criança que ao ser condenada por ter feito o que não devia fazia cara de inocente? Assim. O corretivo na verdade apenas servia de lição nível jardim-de-infância em como melhorar sua própria dissimulação. Da próxima vez estaria mais atenta à como fazer o que não se deve sem ser descoberta, ou caso fosse, a acobertar de maneira mais convincente e/ou menos danosa.


Eu não, eu era uma mula. Eu ia chorando (e alto) para o castigo. Ficar fechada no meu quarto sob ordens superiores de “pensar no que eu havia feito”, realmente me faziam pensar no que fizera e sentir culpa, crendo ser a mais desumana das criaturas da face terrestre. Quando era merecido, ressalvo. Quando não era, minha face em nada se aproximava da inocência, mas da raiva. E eu argumentava, amaldiçoava, eu dizia “eu te odeio” com todo calor da minha fúria. E acabava por levar castigo em dupla jornada.

Já no colégio, nas primeiras experiências de amizade, a fofoca rolava solta entre as amiguinhas. “Viu o cabelo da ciclana que coisa horrorosa?”, ela perguntava. “Parece que a mãe dela mandou podar a cabeça da guria como arbusto por jardineiro com mal de Parkinson”, ela apontava, arrancando gargalhadas maldosas das demais. Mas era a ciclana chegar perto para o discurso mudar. Para a ciclana não, para a ciclana ela dizia que tinha ficado muito moderno e combinado com o formato do rosto dela.

Eu era uma imbecil. A ciclana me perguntava: “o que achou do meu cabelo novo?” , e eu já suava frio. Era mais forte do que eu. Não conseguia não dizer que estava horrorosa e que não sabia o que ela estava pensando quando fez aquilo com ela mesma, o máximo que conseguia para abrandar era dizer que não tinha gostado e que não a valorizava, mas mesmo assim acabava a ciclana me odiando, e ficando amiga de gurias como ela, que não lhe atentavam a auto-estima.

Com os professores, a coisa funcionava em base de babação-de-ovo. A aluna mais aplicada, mais 
solícita . Por mais chacoalhadas ou injúrias que recebesse, ela jamais alterava o tom de voz, jamais exteriorizava qualquer reação de contrariedade, somente se calava em num ato de reverência à autoridade. Na análise conceitual do seu boletim, ela recebia MB (muito bom), excelente comportamento e postura. Pelo menos no que os olhos docentes alcançavam. Todos os apelidos maldosos de seus professores eram criação dela, além de desfilar o reino animal em sussurro a cada virada de costas. “Vaca”, “cadela” e afins.

Em termos de reino animal, eu era uma anta. Eu revidava, eu me posicionava contra a autoridade máxima, e cada injustiça por mim presenciada era fervorosamente contrariada e defendida. Quando eu era culpada, eu respeitava, calava e aceitava minha punição. Certa vez me acusei sozinha porque a turma iria ficar sem recreio se o culpado pelo sumiço do apagador não fosse identificado, e lá fui eu também sozinha até a sala da diretora pensando que ela podia me torturar que não entregaria os amigos envolvidos no delito.  Meu boletim geralmente vinha com um grande I (de insuficiente), no que diz respeito à postura e comportamento. Eu era um organismo vivo em sala de aula, e colégios não são feitos para pessoas, mas para objetos esponjosos cuja única função é a absorção e inanimação. I de incômodo.

Nós duas crescemos. Ambas pertencemos à mesma geração. Temos mais coisas em comum do que eu gostaria que tivéssemos. Nós duas gostamos de filmes, livros, viagens, frescuras de meninas, bebês e animaizinhos. No que afinal você é tão diferente de mim, além de ser arrogante, metida e destrambelhada, ela se pergunta. Não pergunta para mim, porque pessoas como ela não o fazem dessa forma, perguntam-se em silêncio.  

Nossa diferença querida, é que enquanto tu traias o teu primeiro namoradinho e aos olhos dele era a garota perfeita, eu fui lá para o meu e disse que gostava de outro garoto e virei o demônio. Nossa diferença é que no trabalho, enquanto você engolia um sapo atrás do outro, queria usar a cabeça dos seus colegas como degraus de escala e resolveu seduzir o seu chefe para tirar algum proveito monetário, eu mandei o chefe que me assediava para a puta-que-lhe-pariu e pedi demissão em alto e bom som.

Nossa diferença é que enquanto você é amável e solícita com todos, eu sou apenas com quem me vale a pena sê-lo, e como a maioria não me vale a pena, eu passo por antipática. Nossa diferença é que você nunca sentiu o peso do que é real, com o que ele tem de bom e de esmagador, nunca chorou em praça pública, nem amou sem interesse. Você jamais rasgou o script da peça e apelou para improvisação, nem nunca deixou que te fotografassem nos bastidores sem maquiagem.

Nossa diferença é estrutural meu bem. Além de você ser mais esperta e se dar bem melhor do que eu. Vive como quem joga friamente um jogo de xadrez. Nada em você grita, sai para fora e se mostra, como para mim. Nada fica visível a olho nu, nada sai na chuva e volta encharcada, nada despenteia, perde a pose. Nada te meleca o peito e te sua pelos poros, nada te estala como mão espalhada na face. Burra sou eu, não você. Mas eu não corrôo minhas próprias veias, não apunhalo as costas alheias, e não vou ter câncer precoce

Síndrome de Diagnóstico



As patologias nunca estiveram tão banalizadas. O mal-estar se transformou em um tabu onde lágrimas são mais interditadas do que carne contaminada em açougue de esquina. Ninguém mais fica triste, fica deprimido. Crianças perderam a inquietação característica da infância, em troca de hiperatividade. O desinteresse em sala de aula – na estrutura fracassada de ensino vigente – é delimitado em boca cheia pelos docentes como síndrome de déficit de atenção. Me pergunto de quem.

Parece ter sido dada a largada à busca colossal por um enquadramento demarcativo, algo que conste nos registros. A aldeia psi tem sua parcela de culpa no momento em que enaltece os diagnósticos, herança de um dos pais da psicologia, a ciência médica. Diagnóstico, tratamento, prognóstico e resultado, necessariamente nesta ordem. Tudo muito prático, objetivo, linear. E antagônico à psique humana.

Alunos de psicologia geralmente passam os dois primeiros anos da faculdade seguros de que possivelmente são o único caso (desconhecido por Freud) que comporta todas as estruturas de personalidade. Eu inclusa. Sem falar que certamente também tinha TOC, Transtorno Afetivo Bipolar ou bordeline. Mas poderia ser maníaca e ter neurose obsessiva, distúrbios compulsivos e/ou personalidade adicta, depressão, melancolia, hiperatividade, fortes inclinações esquizofrênicas, alguns momentos de pânico e outros em episódios autistas ou anti-sociais. Isto sem contar uma plausível Síndrome de Esquiva, um possível Transtorno de Personalidade, além de convenientes momentos de Agorafobia.

Rodamos o CID e o DSM até nos darmos conta de que – em campo de perturbações mentais - quem tem tudo não tem nada. Alívio? Que nada. Aliviados estaríamos se pudéssemos nomear o que afinal se passa conosco. Ora, se existe um nome para isso, não estamos sozinhos, deve existir alguma saída, se existe diagnóstico deve existir terapia breve, medicação, internação, ou grupo de apoio. A mim apenas cabe parar aqui de braços cruzados, no conforto dessa sala decorada em art noveau, batendo o pezinho, esperando meu Prozac e pagando minha conta todo mês. Más noticias, não funciona assim.

Vemos pessoas institucionalizadas apresentarem-se com o nome de suas patologias, “muito prazer, meu nome é Carlos e sou esquizofrênico”. Com o mundo parecendo cada vez mais um manicômio em forma de globo pintado de azul, passamos todos a fazê-lo. Buscamos equilíbrio, vide as salas lotadas de yoga, verso as casas decoradas em feng shui. Buscamos felicidade, a promessa contemporânea, ou você acha que a mídia funciona em cima do que? É evidente que o carro x, o fast food y, a pasta de dentes z, foram feitos única e exclusivamente para te deixarem feliz.

E buscamos o paradoxo de não ser mais um na multidão, ao mesmo tempo que queremos delimitação generalizada. Ter nome para a própria angústia, solidão, desamparo e dor funciona como âncora, tanto para se agarrar em esperança de cura (inexistentes devo colocar, visto que estes são intrínsecos à condição humana de existência) quanto para justificar-se a si ou ao resto das pessoas. Afinal que culpa você tem de ter depressão?

Chegamos no tendão de Aquiles. A culpa. Talvez a maior fonte de sofrimento da raça humana. Bom que a temos, assim não saímos matando uns aos outros. Mas nos sentimos culpados pela própria dor. Nos sentimos culpados se não conseguimos cumprir a promessa contemporânea ao concretizar a felicidade. E também nos sentimos culpados quando conseguimos.

...

Corra tola, corra!




Ela era tão esperta, ela tinha tudo planejado. Ela sabia mais do que você, ou eu, com certeza mais do que nós, vós, ou eles. Confiante, ela seguia com o nariz apontado ao céu, mas com olhos voltados para frente, quem sabe aonde vai não se entretém olhando para outra direção que não para esta.

Ela percorre atalhos conhecidos. Faz os cortes necessários. Ela paga caro e lhe diz com audácia que tem gasolina pra queimar, mas ela queima quilômetros. Ela segue hora apagando incêndios, hora gastando combustível, mas não pede ajuda. O que afinal vai mudar depois que ela se for? O sol vai continuar nascendo e se pondo, a vida continuará. Com ou sem ela. O que sempre estará ali será a estrada. Avante.

Ela engole o suspiro, mas não perde a pose, ela finge que não engasga. Mesmo que sempre carregue, não importa onde vá, ela carrega. Não tem mais como tentar lembrar do que ela esqueceu de esquecer. Ela salta em queda livre, ela queria criar asas antes de tocar o chão. Ela sabe que logo vai acabar, logo tudo isso vai passar, melhor pensar, melhor nem pensar.

Mas ela prefere atropelar a pausa, afinal de contas ela sabe o que quer, não tem tempo para isso. Está atrasada para chegar onde não precisa estar. Dirigindo na velocidade da luz, ela escuta o grito do som, ecoado na mesma voz que ela insiste em não ouvir, só porque sabe chegar mais rápido. E ele lhe diz: “corra tola”

Assassinos de oportunidade


Funciona mais ou menos assim. O reflexo do homem que se afoga é agarrar-se a qualquer objeto que encontra na frente, mesmo que ele seja um fio de palha. É dentro da mesma dialética. Dois seres imersos no oceano engolindo água salgada agarram-se um no outro e matam-se simultaneamente.

A questão central é que eu jamais estive imersa no oceano. Se algumas vezes estive em cima de uma canoa furada que o parta, é outra história. Mas e daí? Sempre deu tempo de chegar à ilha antes do barco afundar.

Mas se remar cansa, cansa mais nadar. E se não souber nadar, afunda. Esse é o litígio, nadar sem alcançar terra seca, ou afundar descansado. Cansei de te perguntar e tu disfarçar que não ouviu, e cansei de ter que fingir que não ouvi a barbaridade que tu falas. Se tem alguma coisa que realmente me faz querer afundar de vez, bem longe e bem sozinha, é isso. Chega de abastecer tua munição de morte com vida. E portanto, meu caro, não. Por isso, sim.

Assassinato é o nome. E não falo de homicidas em prol da própria sobrevivência, pois estes ainda assim refletem no sangue da própria faca algo de honra. Assassinos de oportunidade, de aluguel, profissionais, que o fazem por amor ao ofício, pela dose contida de adrenalina em cada vida que se vai lhes trazendo a sensação de soberania. Me falas de amor para nutrir meu ódio, que cresce em força cavalar. O que tu sabes sobre amor? O que tu sabes sobre a vida, e as pessoas, e esse castigo olímpico que tu chamas de mundo?

O que tu sabes sobre dor, e sobre o que esta pode fazer de estrago num coração humano? Te respondo, tu nada sabes sobre isso. O que tu sentes é ausência de prazer completo, falta de gozo pleno, o que tu sentes é teu ego contrariado, e teu orgulho ferido, e isso em nada me comove ou me enternece.

Lamento muito te informar, mas amor está a milhões de anos luz de distância do teu egoísmo, do teu cárcere dentro de ti mesmo, das tuas carícias letais, das tuas lanças afiadas que atravessam a carne seguidas afagos tão seguros quanto a queda do décimo segundo andar, desse sarcasmo corrosivo e auto-suficiente, e dessa cruz de pedra que tu cravastes cerrada no peito que vos fala para não contente, revirar. E isso que tu sentes e chamas de dor, não chega nem perto da casquinha da ferida mais superficial que eu tenho, e nem por isso eu mato alguém.

A fragilidade da hora





Hoje revi fotos e cartas antigas. Registros de vida, por assim dizer. Faz tanto tempo, e parece que foi ontem. Hoje eu parei um pouco para sentir, o ritmo alucinante da vida sempre parece se sobrepor ao sentimento. Hoje em dia se fores perguntar para qualquer pessoa o que ela faz, a lista é extensa. O que tem na sua agenda hoje? Será que você tem tempo para ler esse texto?

Acorda, toma banho, toma café, vai trabalhar, e vai voando. Tem reunião as 9:00, tem relatório pra entregar as 10:00, tem prazo até as 11:30, almoça, volta a trabalhar, checa os e-mails, trabalha mais, se segura ao freio máximo para não quebrar a cara do chefe, se concentra, foco. Trabalha, entra no MSN pra espairecer, volta ao trabalho. Final do expediente. Vai pra aula, chega cansado, mas tem prova, tem matéria nova, ou tem trabalho que vale nota ou mesmo você esta já pagando uma nota pra não prestar a mínima atenção. Então acorda.

Nesse meio tempo tem que ter brechas para ler, senão emburrece. Tem que treinar com a mesma obrigação que vai trabalhar, e comer de forma saudável porque corpo é casa. Falando nisso, tem que encontrar tempo para ir ao médico, dentista e terapeuta, porque saúde é fundamental. Faz a mão e pé, cuida muito bem dos cabelos, passa hidratante depois do banho, e cremes específicos para o rosto, porque beleza é fundamental também. Tem que ser produtivo e se destacar de alguma forma, porque se não for despedido vai ser ultrapassado pelo colega da mesa da do lado. Atualizar-se constantemente, tem que estudar, tem que estar informado, mas tem que ter tempo para construir opinião e pensar a partir de idéias próprias, senão vira robô. Tem que se fazer presente para os familiares e nunca esquecer da família que você mesmo escolheu, seus amigos. Como se fosse só isso. Pensa aí, quantas outras milhares de coisas acontecem entre uma coisa e outra?

Vivemos no mundo da técnica especializada, na digitalização da eventualidade, onde tudo parece ser passível de transformação numérica e portanto previsível. Vivemos no império da Ciência, onde criamos nossas convicções de vida saudável e prolongada, muito em breve vamos nascer com prognóstico genético: "Fulano, tantos centímetros, tantos quilos, possibilidade de 90% de câncer na próstata aos 40 anos."

O tempo parece cada vez mais adquirir uma nova dimensão com a velocidade ininterrupta dos acontecimentos, nosso olhar sempre voltado para a próxima tarefa, sintoma de nossa lógica de produção. Você toma banho pensando em que roupa colocar, se veste pensando em qual caminho tem menos trânsito para chegar ao trabalho, em plena segunda-feira já sonha com o final de semana, chega sábado você já pensa que domingo será ruim porque depois de domingo tem segunda-feira de novo, e assim vai. E as semanas passam. E passam as estações, e “já estamos em setembro!” E assim passam-se os anos.

Eis a fragilidade da hora. O estado de fraqueza que é o passar do tempo, sem nem mesmo parar para perceber que os dias não retornam. Pensamos que temos uma vida “cheia”, sem acordar de nossa indiferença a esta irremediável contagem decrescente rumo ao nosso próprio fim. Afinal de contas, o que é realmente importante para você? Nosso passado em grande parte é pura criação nossa. Não é feito de realidade. É feito de significado, da forma como as vivências foram por nós significadas e armazenadas. Nosso futuro também, pura invenção nossa. Planejamos, decidimos, seguimos estratégias, mas sempre surgirá o acaso, sempre existirá o imprevisível.

O tempo é relativo, provou Einstein do alto de sua genialidade. Se você pudesse viajar num trem na velocidade da luz, o tempo para você seria sempre igual à zero, simplesmente não existiria! Você não envelheceria, permaneceria jovem em relação a quem não está dentro do trem. Este é o principio da dilatação do tempo, e decorre de sua própria natureza. Mas você pode entrar em outro trem, e ter o mesmo resultado simplesmente vivendo o agora. Nunca um banho vai ser tão bom se você estiver presente, nunca o seu trabalho será tão produtivo se você estiver concentrado exatamente no que esta fazendo, nunca seus relacionamentos serão tão ricos se você estiver inteiro.

Drummond já dizia: “Eterno é tudo aquilo que dura uma fração de segundos, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata.”

Tempo é a gente quem cria. Tempo é a gente quem faz. Tempo é a gente quem escolhe. Escolha como viver o seu, mesmo que o mundo ao redor pareça envelhecer.

Eternize.