Homem de verdade!




Tem certas coisas que você nunca verá um homem de verdade fazendo, pensando, escolhendo, aceitando, sentindo, ou mesmo tentando por em prática qualquer uma das alternativas anteriores. Mesmo que constitucionalmente não exista um Código de Conduta oficial do homem de verdade, pergunte a qualquer machão sobre o comportamento e ele terá na ponta da língua frases começadas com “sempre”, “geralmente”, “quase nunca” ou “jamais”.


Por exemplo, homens e flores. Os de verdade tem uma relação intencional com as flores, que se resume em comer uma mulher. Então, utilizam do recurso abarrotando floriculturas, carregando discursos prontos e manjados para preencher um cartão cujo texto não vai distanciar dos adjetivos “linda”, “querida”, com  predicados como “adorei te conhecer”. Agora, plantar, admirar, fotografar, ter em casa, saber distinguir diferentes espécies de flores, “jamais”. Não é coisa de homem de verdade.


Tem certas coisas que um homem de verdade jamais aceitaria de uma mulher em um relacionamento. Que ela tenha registro virtual (orkut, msn), a não ser que mencione explicitamente que é comprometida. Vida social também não é bem vista. Algumas amigas igualmente comprometidas são admissíveis. Solteiras não são bem vindas. Amigos de sexo oposto, inaceitáveis. Sair sozinha, com a amiga comprometida para tomar um café no final da tarde, tolerável. A noite com as solteiras, jamais.


Ter opinião também. Porque escutar opinião de mulher? Sua mulher é a conquista que já prova que ele é o “cara”, ora. Aquelas que pensam muito já dão problema. O mais conveniente é que não sejam muito inteligentes, ou pelo menos, incapazes de calcular o QI deles com a facilidade com que fazem com calorias.


Sobre comportamento, tem certos mandamentos teóricos facilmente observáveis na prática. Por exemplo, a atratibilidade de uma mulher é definida pelo tamanho de seus membros inferiores, glândulas ou próteses mamárias. Todo par de pernas a mostra, decotes, ou roupas justas devem entrar em seu campo de visão, e toda mulher gostosa deve ser comida com os olhos (ou com outro membro), independentemente de estar ou não acompanhado ou comprometido. Largar cantadas pela rua, baladas, caçar na academia, na faculdade, até no supermercado, são perfeitamente habituais.


Negar fogo a qualquer mulher que queira lhe ceder o corpo é incabível, manda a lei dos homens de verdade. Em termos de sexo, preliminares existem automaticamente porque as revistas ensinam que fazem parte e macho de respeito tem que ser bom de cama (na fama principalmente, muito mais importante). Comedor. Pegador. Nada de muita trela, dormir abraçadinho, conversar depois da transa. Sentimentos em penetração? Impenetráveis.


A matemática é simples, regra de três: futebol, mulher e cerveja. Sendo ou não nessa ordem de importância. O que os homens de verdade encontram são mulheres de verdade, essa é a verdade da história. Quem? As tristes, as que usam sexualidade pensando em “garantia” de futuro, as muito inseguras ou de baixa auto-estima, as completamente passivas na relação e bastante ativas nas baladas, as que tem o tamanho do glúteo inversamente proporcional ao do cérebro, as que classificam o quanto um homem é interessante pela potência do motor de seus carros e renda mensal. Ah sim, e as desesperadas.


A verdade destes homens de “verdade” consiste em provar ao mundo sua própria virilidade. Filosoficamente, verdade é aquilo que se tem como realidade. Portanto, prefiro manter distância da amostra representacional e lamentavelmente real. Quero um homem “frouxo”, que se afrouxa das amarras de conduta, esses que se soltam. Que sentem, que gostam de filmes, livros, com assuntos e interesses mais nobres, que saibam conversar e escutar. Que não acham que passar segurança para uma mulher equivale a ter voz firme, ordem e falta de progresso. Os que choram. Que tem bíceps hipertrofiados de tanto remar contra a corrente.

Quero os que se arriscam ao ridículo. O ridículo de se apaixonar, de largar um “eu te amo” ao telefone na frente da turma do Bolinha. Os que fazem amor. Um original, sem limitações, desses que te deixam expelindo poesia pelos poros. Quero um homem fora da lei, contra-regra. Quero os rebeldes, os transgressivos, os inconformados, os que não se acostumam, os marginais do código geral.


Dispenso os que podem confundir minhas coxas com a de outras moças, e me mostrem toda dor. Quero os que encontraram ideologia pra viver, que descobriram o que é força, coragem e caráter de forma autodidata. Procuro aqueles que colocam em xeque a teoria darwiniana, trocando a suposta evolução por revolução. Que saibam se inventar e reinventar. Os homens de “verdade” eu passo, deixo para as mulheres de “verdade”. Ou da grande realidade, o que dá na mesma.

A hora da Partida





Fiz um pacto comigo. O de escrever este texto até o final sem chorar. Um desafio a tudo o que aqui dentro ofega, ergue, lembra, cursa, agita. Justo eu, que conheço tão de perto a partida. Essa sem ter planos e de poder voltar quando quero. Mas tem um problema sério, que se chama eco. Explico.

Uma das coisas mais tristes na vida, é encontrar alguém que te faz crer que existe um eco no mundo para tudo aquilo que te enlata o peito, te transborda pelas palavras por que nelas não cabe, te descolore de sonho em carga diária. A promessa de que há, mas não vem. Aquele quase, aquele perto, aquele um pouco antes, um pouco depois, você nem sabe mais onde no tempo. Aquela saudade imensa que fica de tudo o que não se viveu. Isso é uma das coisas mais tristes na vida.

No caso presente, o problema foi ter encontrado o eco ressonante, um irmão de existência, um bicho como tu, ter sentido o peito desentupindo, a palavra cheia e já desnecessária e a vida à cores de arte surrealista. A vivência de que há, de que veio. Aquele todo, aquele encontro, aquela hora exata, aquele além de tempo e espaço. E ele partir, para deixar aquela saudade absurda de tudo o que se queria continuar vivendo.

Mas isso é pequeno. Grande é tua existência ter feito marca na minha de forma tal que eternizastes a ti mesmo em mim. Grande é tua liberdade em ser do mundo, de voar alto, de desprender-se, de arriscar. Grande foi tudo que tu trouxestes e que vai ficar presente na tua ausência, sacramentado na minha vida e em tudo o que dela parte. O efeito se vê ao redor.

Poucos são os que sabem o que fazer com as próprias asas. A saudade é só um lado da mesma viagem, o mesmo trem que chega é o que parte. Obrigada por tudo! Meu mundo tu já marcastes, agora é o outro mundo que te aguarda. De qualquer forma, sempre esqueceremos do mundo quando nos encontrarmos, mesmo que por vias metafísicas. Vou acabar antes de quebrar meu pacto inicial comigo mesma.

Avesso




Depois da escuridão vem a luz. Mas a luz, como tudo, tem no mínimo duas faces. Ou clareia-te os passos, ou te cega inospitamente. Cabem aos roteiros de universos limitados o ato performático de bom ou mal. Vida real meu bem, ah, isso são alguns poucos minutos por dia. O resto é o que faz parte do script. Te tornastes o escarro aleatório da tua própria crença, e o que me parece desprezível é que te contentas em servir à isso, mesmo que – por motivos óbvios – tu negues.

Ah, se tu soubesses do que eu abdicaria ou renunciaria, caso pudesse, só para assistir florescer em tua face um sorriso mais calmo. Como foi que deixastes o mundo te corromper de tal forma que acreditastes que o que se vê é tudo o que é possível de ser visto? Quem conseguiu te convencer que o melhor cálice é aquele onde não se bebe? Se eu pudesse, alimentaria o que resta de fome nos teus olhos com ainda mais fome, para que nunca mais deixes de enxergar como deveria. Mas enterrastes minha onipotência com uma grande parte tua.

Veja como a cena se repete, insistentemente. Nascemos com tanta vida para padecermos cada vez mais, a cada dia. Tudo do avesso. Lembro-me das coisas mais formidáveis, as simples. Tuas mãos sempre em concha segurando a enorme xícara de chá enquanto o frio estourava ao lado de fora e nublava a janela álgida, com um olhar tão tenro que derretia as geleiras que eu trazia do mundo em mim. Esses mesmos olhos que me espiavam por detrás de algum livro, quando me via voltar pela noite, com as dores da rua, com poesias colhidas, com a arte lanhada, com a gradação dramática. Nunca precisamos de palavras.

Estes olhos eram a minha casa cheia. Eram estes olhos que me adentravam pelo peito, e me traziam de volta do anestesiamento, dos venenos, das pulsões de morte, e são a estes mesmos olhos que me remeto quando o chão se escapa dos meus pés, quando o mundo congela, quando a gravidade me esmaga. Sabes bem que entendo do escuro. Sabes bem que fui tão mais além, até do que pretendes ir. O que não sabes é que volto e te rastreio os passos. O que não sabes é que vou ao inferno quantas vezes for preciso, e que conheço mais atalhos que tu.

Enganas-te. Não pense que é coragem se jogar assim. Só se joga quem tem medo. Coragem é se desatar das amarras. De mim jamais terás a piedade que finges esperar. Eu desisto, no dia em que te olhar nos olhos e não mais te encontrar. Eu desisto quando a minha frente, avistar um par de olhos vazios, sem resgate. Nesse dia sim, o fim virá para mim também. Enquanto ainda ver história em teus olhos falantes, enquanto teu silêncio seguir em nada calando, enquanto escutar no eco do vento teu choro, não desisto. Te desafio a voltar. Te desafio a sentir. Te desafio a viver.

Esse monstro de olhos verdes...




Ah, querido. Funciona assim. A gente tem umas feridas primárias, dessas que, ou a gente vai limpar pra sarar, mostrando pro analista que as raspa com lamina afiada e joga álcool por cima, ou vai passar o resto da vida se relacionando a partir disso. Toda ferida aberta funciona como lembrete. E tudo o que se aproxima, já vira repulsa instantânea, defesa do corte que já se tinha. Não fostes tu quem o fizeste, mas remexes e me lembra que ele existe.

É querido. Mas é como o veneno homeopático que adentra na veia do braço exposto ao soro, e amarga-me os órgãos. É como um envolto negro a me abraçar, cegando-me os olhos. É o que desafia-me a razão e o juízo para lançar-me em queda livre no lado escuro do medo, da cólera, amnésica do bom senso por ter ultrapassado o portal do recurso primitivo. É quando meus seis pecados outros se revoltam e firmam guerra a tua cobiça.

Não querido. Eu sei que você me ama, me deseja, e não me trai. E sei que abordagens ou cortejos não lhe hesitam. Mas entenda. Eu preciso de mais, quero tudo, quero todos os olhares e desejos, quero tua ação solitária, exclusividade em teu pensar. Quero que todos os teus lados, como uma multidão formada e reunida em um só homem, a mim se voltem. Teu globo ocular carrega todos os olhos que desejo apoderar.

Sim querido. Sei que sou bela, e esperta, e formosa aos teus olhos. Entenda, não é problema de auto-estima. Ou é. Mas não de falta. É de excesso, querido. É algo que me enforca na pergunta “mas como”? Como não és em teu desejo mais secreto, inteiramente voltado ao meu ser? Como pode existir espaço para qualquer outra em tua imaginação que não eu? Como o corpo alheio te pode guiar os olhos em minha ausência? Eis o mal que me consome.

Não, querido. Não precisa ser real. Imaginário também. Pode ser a do filme, a da revista, a vizinha que todo garoto sempre quis ter, pode ser qualquer coisa que tenha seios, e glúteos, e panturrilhas, e belas pernas, menos de 1,80 de altura, voz feminina, rosto delicado, e pés pequenos. Eu entendo, querido. Eu sei que tu não queres outra, mas querido, eu quero todos os teus outros.

Eu vejo querido. Então, digamos que minha ferida é narcísica. Uma delas ao menos. Dor de filha mais velha que quer ser única em pelo menos uma coisa na vida. É corrosivo do meu próprio amor. Prefiro então minar a terra e secar o plantio a tempo de não ver brotar nosso jardim em terreno vizinho de outras flores. Deixo-me esquecer de tudo que me importa então, para que meu ego se proteja do aniquilamento, mesmo que nem para ele importe mais.


Querido?
...
Querido?
...

Onde estão teus olhos?


Dadaísmo ao Moralismo






Julgaram a saia, a moça, e as coxas, o Cristo e o Anti que é pai de todos. Todos por um, um por ninguém, mas a priori é ordinária. Comum mesmo é o mais barato. O vulgar custa caro. Eu espero não crer na descrença, que é de onde toda crença parte. Credito a palavra e o gesto, mesmo sabendo que não há crédito algum. Se espero já tenho esperança. E esperança é a corda que todo desesperado se agarra na última das circunstâncias.

Deixo passar, mas o que passa? E o que se passa? Eu me passo, sim eu sei. Mas nem sei nada, sabendo tudo. Se tem algo que o mundo fala é falácia! Se tem algo que eu não escuto é o que o mundo a fala. Mas de que mundo venho? Estou quase certa que eu não sou daqui. Mas se cá estou devo ter algo em comum com a priori ordinária, com o mais barato e com o vulgar, e deve vir desta conclusão a esperança.

Mas e a moça, e a maçã, e as coxas? Vão tão bem que não vão nada bem, é o que dizem por aí. Aí e lá, e lá ou acolá vem do além, lá de onde eu venho também. Então é tudo aqui. O fora é dentro, e o dentro é fora. Um quadro cíclico. Círculos enganam bem. Por isso o mundo é redondo. É cada um no seu quadrado, não é? Mas e os seios, e as fogueiras, e as bruxas, e os desejos?

Quem são eles? Que homens são tão homens? Que mulheres são tão mulheres? Demasiadamente humanos? São tantas perguntas erradas, de respostas certas. São tantas perguntas certas, de respostas erradas. Quem vive de sedução é a fruta podre que caiu da árvore, e tenta convencer o colhedor de que é melhor que a do topo, ele finge que acredita e come. Os livros evolucionistas nada evoluem. Existe um mundo além da reprodução e da sobrevivência. Com tanta hipocrisia, em que saia-justa nos metemos.

Cansaço é o que resta quando a esperança falha. Cansei de ter esperança. E agora, como faz? Faço certo pelo errado, o vento trás a direção. É o que ouço pelos cantos, que descubro nesses tantos desencantos. O que mais confio é na desconfiança que sempre tive. Anti é aquilo que se prega na moral. Cristo!

Metamorfose





Não sei dizer exatamente como foi. Sei que não foi de um dia para o outro também, disso tenho certeza, devido à complexidade e grandeza da questão. Acontece que parei de juntar meus cacos. Parei simplesmente. Percebi que aqueles cacos que tanto me empenhava em juntar remontariam uma sósia assustadoramente remendada do que eu já fui.

Cansei também da auto-piedade, a gente tem tanto dó da gente mesmo que chega a chorar, um absurdo. Desisti de remoer a busca imóvel por tudo aquilo que estava em algum lugar que eu nunca tive acesso, mas que por saber que existia, perdia todo o tempo do mundo procurando. É preciso desistir de certas coisas, para não desistir de si mesmo.

E era preciso abrir mão de quase tudo o que eu acreditava sobre mim. E fazê-lo sem referência alguma já é o retrato do desamparo. Se não tinha referência nem em mim mesma, partiria de onde? Que assim seja, invento o novo. Se seria uma grande mentira ou não, já não importava mais. A verdade em si não deixa de ser uma questão de fé. Grande parte da verdade sobre algo ou alguém existe porque alguém crê, a existência sem crença torna o reconhecimento da verdade inacessível.

“Um troço qualquer morreu”. Sem direito a ressurreição, reencarnação, ou reclamação. Se isso se perdeu no passado, não existe. Mas falo de mim aqui, ao contrário do Cazuza que velava o “entre”. Se o que fui estava morto, o que me restou foi perceber que estava viva. Tinha o dever de construir uma nova obra de mim mesma. Teria que me reinventar. Criar mesmo. Se não sou do tipo que faz releituras ou réplicas de obras, seria contraditório fazer isso comigo.

Onipotência a minha? Ora, se eu não me governar, nem de Deus mereço respeito. Defina-me. Decifra-me. Já devorei todos que tentaram. Cansei. Voltei a questão a mim, e tentei também. Acabei por me consumir. Mas não é essa a beleza afinal? A possibilidade de ser ou não ser? Já não sou mais tão criança a ponto de ser porque sou e pronto. E não sou tão adulta a ponto de ser pra receber em troca.

Já posso ser o que eu quero e manter a minha palavra. Ser fiel a si mesmo já é mudar o mundo.

Sorte no jogo?





Os dois eram tão ou mais espertos. Se encontraram por um presente daquilo que, por não se saber o nome, chamamos acaso. Ele um romântico disfarçado de canalha para não parecer otário, ela uma romântica disfarçada de realista, para não parecer ingênua. Cruzaram olhares, palavras e gestos, depois telefones, línguas e sonhos, esses últimos é claro, cada um pra si.

Tinham várias coisas em comum, dentre elas, a juventude, um histórico de desilusões, o medo de serem feitos de idiotas, e o bem-querer um pelo outro. Ela era bela, dessas belezas bem raras, com capacidade de iluminar o vazio escuro de uma balada vulgar. Ele guardava relíquias no peito e nos poros, e possuía um ar de tristeza boêmia onde qualquer bom espectador poderia colher de suas pegadas o rastro de poesia deixada para trás, em cada passo.

Ele se acostumou a fazer sexo seguro, sem risco de afetividade. Ela, a negar fazê-lo. Nenhum dos dois virou robô da juventude esvaziada, mesmo que resguardada e protegida ambos ainda carregavam a verdadeira existência no íntimo. Mas não, nenhum daria o braço a torcer. Mulheres gostam de homens que não lhe encham o ego. Homens gostam das mulheres difíceis. Ambos eram convictos de que pertenciam a planetas distintos, Marte e Vênus precisamente, guerra nas estrelas.

Então ele não ligou no dia seguinte. Prometeu que ligaria, mas esperou até o sétimo, numa estratégia bíblica de construção de mundo. No primeiro dia, o nascimento da interrogação. No segundo, o palpite das amigas. No terceiro a busca por defeitos próprios. No quarto, pelos dele. No quinto a lembrança de tudo que não é, e por isso já é triste. No sexto a desesperança. E no sétimo então, nada descansado, ele liga.

Ah não, mas claro que ela não atende. Afinal de contas, ela não é fácil, não é qualquer uma, ela é ocupada, ele não é o único que a deseja, ela tem vida, a artimanha falhou. Ele tenta de novo, e ela com o celular na mão como se fosse coração, deixa que pulse. Trim-trim, tum-tum. Nem aí. Agora ele vai ver o que é bom. E agora ela vai ver que não sou um idiota qualquer.

Ambos pediam para não caírem na tentação do mundo online. Como é difícil manter o falso desinteresse quanto a tela grita acessibilidade à vida alheia. Maldita era da comunicação quando a proposta é não se comunicar. Ele não visitava o orkut dela, para que seu nome não ficasse gravado. Ela visitava o dele, depois de ter trocado a configuração de visitas. Ele entrava no MSN, e o coração dela saltava aos olhos. Bastava ela entrar para que ele sentisse lhe congelar o sangue. Mas nenhum seria louco ou tolo o bastante para ofertar a primeira palavra.

Quando encontravam uma desculpa ajustada para que o descaso não corresse valo abaixo, ela se preocupava em opinar de forma inteligente usando chavões teóricos, ele, em desfazer suas opiniões. Concorriam em quem via mais filmes cults, lia mais ou menos Platão, ia mais ao teatro, entendia de arte Renascentista, ou sabia sobre o lado B dos grandes gênios da literatura. Ela se perguntava se a analogia dele sobre os pré-socráticos falava algo sobre ela. Ele tentava juntar os quadradinhos da ultima imagem de Picasso que recebera por e-mail, na busca por alguma via estética de dizer que ela o queria.

Sempre que ele ligava, o celular dela estava fora da área de cobertura ou temporariamente desligado. Ele nunca podia falar naquele momento, e perguntava se não poderia telefonar depois, coisa que jamais faria no mesmo dia. A despeito do inexistente acaso inicial, seguiam forjando desencontros intencionais. Tudo em nome do jogo. Passaram-se meses de silêncios forçados, desinteresses fingidos, descasos maquinados. Passou do ponto. “Não era pra ser”, ele disse. “O que é meu está guardado”, ela pensou. Nunca ficaram juntos. Eram bons jogadores, e quem tem sorte no jogo paga o preço do azar naquilo pelo quê se joga. Ou no único saldo que valeria, no fim das contas. Eu canso de ver tanto amor jogado fora.

Entre crianças e filósofos




Eu preferia morrer à perder a curiosidade infante-filosófica-nata, e viver “sobrevivendo” em conformismo apenas. Lembro-me de quando meu pai me explicou frações matemáticas com pizzas. Até então, elas pareciam ininteligíveis. Ele pegou a pizza, cortou em 6, pegou uma, deu uma mordida e apontando para o pedaço de pizza ainda de boca-cheia, sentenciou: “eis um sexto”. Ah, era isso?

Não lembro minha idade exata, menos de uma década de vida, com certeza. Lembro de ter matutado na minha mente juvenil: “a matemática nada mais é do que uma forma de representação do mundo”. Conforme os cálculos se complexificavam, minhas perguntas iam seguindo as leis da multiplicação, incluindo ai indagações acerca das próprias limitações matemáticas. Desde aquela época, já existiam as crianças que decoravam as regras ensinadas, aplicavam-nas em provas e tiravam boas notas, e a esse processo se resumiam suas respostas e suas verdades.

E existiam as crianças, comigo inclusa, que faziam perguntas imbecis tais como “porque não é possível calcular um sentimento?”, ou que procuravam descobrir como fazer uma conta matemática por caminhos distintos, chegando ao mesmo resultado. O problema era que às vezes me perdia nas provas brincando disso, e depois de algumas delas tive que – pelo menos nas avaliações - me contentar em seguir o caminho chato, perigando repetir o ano.

Hoje analisando a cena, vejo o significado filosófico daquela curiosidade ainda instintiva, que toda criança tem. A matemática é uma representação, em signos, do mundo. Os números que compõem a matemática, são símbolos de tudo que é quantificável, e na matéria isso se torna prontamente observável. A matéria em si é dinâmica, sem a necessidade de intenção. Mesmo que sigam as leis da Física, fenômenos naturais ocorrem sem necessidade intencional, o que nos leva a concluir que a matéria é dinâmica por si mesma. Todo fenômeno físico pode ser convertido em números e explicado matematicamente. Se a matéria é dinâmica, ela nem sempre segue o mesmo caminho, linear, passo a passo, para o mesmo fenômeno. Porque então matemática deveria?

A história complica bastante se pensarmos na Ciência atual. As ciências em geral são todas filhas da Filosofia. O progresso da Ciência, nada mais é, do que respostas às perguntas daqueles que ainda fazem perguntas, com o perdão do pleonasmo. Mas e quanto àquilo que não é passível de quantificação? Aquela minha inocente pergunta “imbecil” era um raciocínio que fugia da lógica formal. Mas ainda vivemos a dialética marxista, e quando não, somos tão cartesianos que fragmentamos o sujeito em corpo e mente, e só nesses dois hemisférios encontramos um sem-fim de especializações, cujas tentativas são tão limitadas quanto nosso vão conhecimento.

Você tem problema de visão e comenta isso com um amigo médico. Só que seu amigo é gastrologista. Ele lhe encaminhará a um oculista. Você vai ao oculista, e ele descobre que seu problema existe devido a diabetes e assim você sai de lá com indicação a um nutricionista e um endocrinologista, no mínimo. Vai cansar de esperar sentado na salinha de espera como é de costume, até sentir dor na coluna, e será encaminhado para um fisioterapeuta. Chegando neste, vai ter um chilique porque ninguém parece poder lhe ajudar em seu problema, e ele lhe indicará um psicólogo. Você vai até o psicólogo, já com um nível de estresse tão grande que começa a sentir fortes dores no estômago, desconfia de uma úlcera e comenta com o psicólogo. Ele vai te mandar para um gastrologista, e então você vai bater na porta do seu amigo do inicio da história, e lhe perguntar qual é afinal, a finalidade das ciências da saúde? “A própria saúde ué”, ele provavelmente vai lhe responder escrevendo sua receita de remédio pra úlcera e achando que você é um “tapado” completo. Behavioristas, expliquem como funciona o condicionamento. Sim, espeto vocês também.

Vejam as “descobertas” dos gênios da história. São óbvias, vide a gravidade por Newton, através da simples queda de uma maça da macieira. Mas só se tornam “óbvias” depois de terem sido constatadas. E apenas o foram, porque alguém arriscou sair da lógica comum, e lançar aquela perguntinha que toda criança faz o tempo todo: por quê?

Já conversaram com alguma pessoa absolutamente convicta de algo? Vejam como as certezas são frágeis, a ponto de serem defendidas com unhas e dentes. Não existe estupidez maior do que atrelar-se as próprias verdades, se contentar com as realidades que lhe foram apresentadas, e cessar as indagações na primeira resposta que vier ou na própria conclusão empírica. Sábios são os que se consideram aprendizes, que perguntam e escutam. Medíocres já têm quase todas respostas. Mas estão entre os convictos os portadores da maior ignorância.

Bem-casados



Se Shakespeare estivesse vivo e assistisse a entrada de uma noiva em uma cerimônia de casamento atual, provavelmente puxaria um bloquinho durante o sermão do padre e passaria o tempo descrevendo-a com a mesma fibra de tempos remotos. Eis que esplendorosa, trajada do brilho lácteo e brancas sedas, pelas portas adentra em direção ao altar. Sob o olhar furtivo das donzelas, admirado dos cavalheiros, e hipnotizado dos querubins, flutua distribuindo em lampejas púrpuras o sorriso cintilado em marfim e quimeras de encantos de fadas.

A cerimônia de casamento é bela. Estive recentemente em uma e algumas coisas são rotineiramente observáveis. Reitero que aqui me refiro aos casamentos “moderninhos”, desses que se casam por amor, visto que aqueles a “moda antiga” ainda existem as pencas. Dentre a turma high-tech, toda noiva em dia de casamento é bonita. Todo noivo sua o colarinho de nervoso, no momento prévio ao altar. Toda noiva entra triunfal na Igreja, e todas elas tem um sorriso tão gracioso e aberto, hora com covinhas abaixo do brilho dos olhos, hora com a meiguice das bochechas rosadas, os cílios curvados, e o coração entregue.

Todo o noivo desfaz-se da tensão e da testa enrugada, ainda atordoado de tanto ter andado em círculos ante os convidados na espera, abrindo em reflexo o mesmo sorriso puro ao vê-la, dividido entre o menino impaciente que aguarda o dia de Natal para abrir seus presentes, e homem que espera tão mais impaciente pela hora de reafirmar seu amor à mulher de sua vida. E frente a estes dois, a única coisa possível a se desejar no íntimo, é que sejam felizes.

Eis que então por praxe cerimonial, chega a parte do juramento. A jura, todos sabem, vale até que o silêncio, ou o tédio, ou as crises existenciais, ou a própria convivência, ou tudo isso junto, os separem. O que é a própria morte. Não da vida, mas da relação. O artifício do juramento, no entanto, me incomoda tal como me incomoda toda e qualquer fala ensaiada, não espontânea. Mas esta em especial, não apenas inclui a categoria, como está incompleta, deveria ser repensada e reescrita.

O problema está em seguir a tradição. Ligadas ao valor da propriedade, à conquista das terras e aos acordos políticos entre a nobreza, o casamento era essencialmente um ato de aquisição, moda que teve inicio marcado na Roma antiga. Confundir casamento como conquista de vida é uma armadilha. Eu me formei, plantei uma árvore, fiz algum bem ao mundo, consegui uma colocação melhor no meu emprego, e me casei. Seguir conquistando, em movimento contínuo é o que demanda a sobrevivência da união de escovas de dentes. Frente a isso, talvez outros pormenores deveriam ser indagados ao noivos.

Primeiramente, se concordam em jamais terem neste dia um marco de garantia da presença do outro, retirando-lhes da responsabilidade de seguir conquistando seu parceiro dia após dia, sempre tendo em mente que nos tornamos eternamente responsáveis por aquilo ou aqueles que cultivamos. Aceitam? Também poderia estar incluso se concordam em respeitar o silêncio quando é preciso, assim como a liberdade e individualidade com a mesma importância que possuíam antes deste dia, mantendo independência um do outro, cultivando interesses, amizades, sonhos, aspirações e espaços próprios. Sim ou não? 

Acrescentaria ainda se ambos concordam em se esforçar para serem “artistas no próprio convívio”, trazendo um pouco de poesia para a vida escrita em tom de noticiário, um pouco de melodia para o tumulto das cidades, um pouco de luz para o escuro das noites, um pouco de luar para o meio dos dias. Se pretendem dar menor importância paras as toalhas molhadas sob a cama e os sapatos espalhados pelo chão e maior  para a singeleza dos pequenos atos, como a janta sobre a mesa, massagem no pé, cerveja no gelo, embalo de rede, cafuné antes de dormir, e bilhetinhos na geladeira. Ainda somaria jamais dormirem de costas com raiva um do outro, deixando que as discórdias se acumulem por preguiça de discutir a relação, e exercitando arduamente a compreensão, o companheirismo, a fala, a escuta, os beijos e abraços. De acordo?

Estes são pressupostos básicos de convívio entre um casal, mas a verdade é que não existe receita pronta, como a dos “bem-casados” que a gente leva de lembrança. São tantas outras milhares de coisas que compõem um casamento, seja ele na Igreja, seja em resolver dividir o guarda-roupas sem maiores cerimônias, que poderíamos entendê-lo como construção. Cabe ao casal, em nome do próprio amor, encontrar a rima, a prosa, e o verso frente a uma nova biografia, escrita ou reescrita a quatro mãos. Aos noivos, uma feliz inspiração.