Avesso




Depois da escuridão vem a luz. Mas a luz, como tudo, tem no mínimo duas faces. Ou clareia-te os passos, ou te cega inospitamente. Cabem aos roteiros de universos limitados o ato performático de bom ou mal. Vida real meu bem, ah, isso são alguns poucos minutos por dia. O resto é o que faz parte do script. Te tornastes o escarro aleatório da tua própria crença, e o que me parece desprezível é que te contentas em servir à isso, mesmo que – por motivos óbvios – tu negues.

Ah, se tu soubesses do que eu abdicaria ou renunciaria, caso pudesse, só para assistir florescer em tua face um sorriso mais calmo. Como foi que deixastes o mundo te corromper de tal forma que acreditastes que o que se vê é tudo o que é possível de ser visto? Quem conseguiu te convencer que o melhor cálice é aquele onde não se bebe? Se eu pudesse, alimentaria o que resta de fome nos teus olhos com ainda mais fome, para que nunca mais deixes de enxergar como deveria. Mas enterrastes minha onipotência com uma grande parte tua.

Veja como a cena se repete, insistentemente. Nascemos com tanta vida para padecermos cada vez mais, a cada dia. Tudo do avesso. Lembro-me das coisas mais formidáveis, as simples. Tuas mãos sempre em concha segurando a enorme xícara de chá enquanto o frio estourava ao lado de fora e nublava a janela álgida, com um olhar tão tenro que derretia as geleiras que eu trazia do mundo em mim. Esses mesmos olhos que me espiavam por detrás de algum livro, quando me via voltar pela noite, com as dores da rua, com poesias colhidas, com a arte lanhada, com a gradação dramática. Nunca precisamos de palavras.

Estes olhos eram a minha casa cheia. Eram estes olhos que me adentravam pelo peito, e me traziam de volta do anestesiamento, dos venenos, das pulsões de morte, e são a estes mesmos olhos que me remeto quando o chão se escapa dos meus pés, quando o mundo congela, quando a gravidade me esmaga. Sabes bem que entendo do escuro. Sabes bem que fui tão mais além, até do que pretendes ir. O que não sabes é que volto e te rastreio os passos. O que não sabes é que vou ao inferno quantas vezes for preciso, e que conheço mais atalhos que tu.

Enganas-te. Não pense que é coragem se jogar assim. Só se joga quem tem medo. Coragem é se desatar das amarras. De mim jamais terás a piedade que finges esperar. Eu desisto, no dia em que te olhar nos olhos e não mais te encontrar. Eu desisto quando a minha frente, avistar um par de olhos vazios, sem resgate. Nesse dia sim, o fim virá para mim também. Enquanto ainda ver história em teus olhos falantes, enquanto teu silêncio seguir em nada calando, enquanto escutar no eco do vento teu choro, não desisto. Te desafio a voltar. Te desafio a sentir. Te desafio a viver.

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