Não se acostume!


Concordamos que o mundo está caótico. É senso comum o quanto o ser humano faz jus à frase eternizada de Einstein, que já sabia que além do Universo, podemos vislumbrar o infinito na estupidez humana. Irei poupá-los de listar aqui exemplares desta dada condição – devo confessar que até iniciei e desisti – uma vez que a lista também não chegaria ao seu fim. Sim, concordamos.

O que me fascina é que em meio a tanto absurdo, destruição e imundice, o ser humano tem a capacidade de expandir-se, de sobrevoar, de encontrar tesouros que se escondem em meio às terras secas.

Sim, tem. Afinal de onde vem a arte? De onde vem a boa música? De onde sai a poesia espremida do pulso, que ainda pulsa? Não basta ter pulso. Deve pulsar. O mundo nos convoca com uma força descomunal ao anestesiamento dos sentidos. Corporalmente temos o tato, o olfato, a audição, o paladar e a visão. É através destes sentidos que a gente “pega” o mundo, ou que deveria. Porque a correnteza nos convida enfurecidamente a entrar no piloto automático.

Entrar no piloto automático é uma das coisas mais tristes que eu conheço nesse mundo. Sentimentos recreativos, lágrimas reativas, palavras esvaziadas, rotinas carcerárias. Os desejos são raptados pela lógica de consumo, os amores produzidos e as relações flutuam na mesma órbita mercantil. A música foi corrompida, a criação foi anulada, a alma pede “arrego” mas o tráfego segue furioso. Loucura não seria fingir que isso é normal? Os valores estão deveras distorcidos.

Não são apenas pessoas rasas feito água de açude que ligam o botão do piloto automático no momento em que acordam, e desligam quando vão dormir, onde apenas em sonhos se permitem outras percepções. O anestesiamento é quase que um sintoma contemporâneo. E como todo sintoma, o princípio se encontra no ataque ao agente invasor. Inversamente no caso, transformar-se em um microorganismo que sobreviva contra a correnteza do macro.

Gostamos de nos acostumar. Sentimos certa segurança nos consensos e generalizações. Temos na coletividade e nas marés de mão única uma noção de pertencimento. É um caminho aparentemente cômodo, afinal o ser humano é um dos animais mais adaptáveis. Romper com hábitos exige força e coragem. Sair da zona de conforto. Experimentar-se. Olhar de novo. Andar na contramão. Perceber outras coisas. Sentir. Mudar de idéia. Tente, invente, faça uma coisa diferente. Seja o que for, não se acostume!

Porque gostamos de viajar? Porque em uma viagem, fazemos isso forçadamente: rompemos com nossos hábitos. E romper com as próprias convicções é libertador. Você mesmo já se perguntou?



  • Hoje, ao acordar, o que você pensou? Se é que pensou.

  • Você viu o que ao se olhar no espelho? Você costuma se olhar nos olhos quando encara o espelho, ou apenas observa sua aparência física?

  • E nos olhos das pessoas que convivem com você, desconsiderando o grau de proximidade ou até de afetividade. O caixa da padaria, o porteiro do prédio, seus familiares ou colegas de trabalho, seu parceiro. Você olha nos olhos ao dirigir-lhes a palavra?

  • Você canta dentro do carro bem alto e percursiona a direção ao ouvir uma música que goste, ou se segura com medo de parecer ridículo?

  • Você sorri quando vê uma criança indo para escola? Aliás você percebe as crianças indo para escola quando sai de casa?

  • Ao desejar “bom dia”, você o faz sem significado algum, porque cresceu ouvindo que era educado dizer bom dia para as pessoas? Ou realmente deseja que o dia seja bom?

  • Ao perguntar “tudo bem contigo?” você realmente quer saber?

  • E ao responder: “tudo bem!”? O que é estar tudo bem?

  • O que te fez sorrir pela última vez, sem que fosse um sorriso reativo ou cortês? O que faz teu coração sorrir?

  • Quando foi teu último choro, desses em que a alma transborda do corpo?

  • Você já disse que ama alguém sem querer ouvir de volta? Já te sentiu abençoado pela tua simples capacidade de amar alguém, independentemente da recíproca?

  • Quando foi a última vez que questionou as tuas certezas? Quais são as tuas certezas “absolutas”?

  • Você já calou fervorosamente a boca nervosa de um amor em uma discussão com um beijo?

  • Já esqueceu de que existe miséria no mundo escutando um coração bater?

  • Antes de julgar alguém, já se perguntou se não faria o mesmo caso estivesse na mesma situação? Já parou pra pensar que sempre se julga da situação onde se está?

  • Quando você come, você pensa na saúde do teu corpo? Quando deixa de comer, pensa na saúde da tua alma?

  • No sexo você batiza um orgasmo com um beijo apaixonado na boca?

  • Quando você deseja, você realiza? O que afinal você deseja?

  • Ainda no desejo, você tem comedimento entre ir atrás do que deseja ou engolir o próprio, pelo bem da humanidade?

  • Quando foi a última vez que você se sentiu útil? Quando pensou que conseguiu fazer alguma diferença no mundo ou na vida de alguém?

  • Quando sente que te supera? Tenta te superar, sempre? Sempre mesmo?

  • Quando foi a última vez que descobriu desenhos nas nuvens?

  • Já contou as cores do caminho que sempre faz ao voltar pra casa?

  • Quantas lágrimas você já permitiu que lhe molhassem o ombro?

  • Já cantou para alguém dormir?

  • Quando você venceu a própria preguiça?

  • Quantas noites já passou acordado porque viver, naquele momento, parecia mais interessante do que dormir?

  • O que te faz crer no que tu crês sobre ti mesmo?

  • Quando sentiu orgulho de ti pela última vez? Quando se orgulhou de ter alguém na tua vida?

  • Quando foi a última vez que você entrou em contradição? Você já chegou a concluir que os sentimentos são de fato contraditórios?

  • Você já se apaixonou ao ponto de sentir a ausência de uma pessoa como a falta de um membro do próprio corpo que até então nem sabia que tinha, mas que virou um órgão fundamental para que você consiga respirar?

  • Quando foi a última vez que perdeu a noção da hora?

  • Você se permite ficar triste, ou acha que tem algo de errado com você se tua vida não se aproximar de um comercial de cerveja?

  • Quando foi a última vez que sentiu o corpo arrepiar por algum som, gosto, visão, toque ou cheiro?

  • Você escuta a sua própria voz?

  • Alguém já te falou que na vida a única coisa sem solução é a morte, e que para todo o resto existe solução? Se ninguém falou, eu estou falando.

  • Você já parou pra pensar que se teve saco de ler isto até aqui, talvez o momento seja bem favorável para encarar o teu dia de hoje como o dia mais importante do resto tua vida?

2 comentários:

  1. Lindo demais, Manu.
    E como tu conseguiste colocar esses sons de violino que ouvi lendo o texto?

    Um beijo de bom dia pra ti!

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  2. Manuela Tuéfoda Marques de Souza,
    Respondendo... “Quando se orgulhou de ter alguém na tua vida?”
    Agora!

    Lindo, linda!
    Beijos

    PS- E o Rio de Janeiro continua lindo? hehehehe

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