Bulimia Emocional


O termo grego boulimos é antigo. Hipócrates o empregava para nomear uma fome doentia, não fisiológica. Bulimia provêm de bous (boi) e limos (fome), o que significa uma fome tão grande que se pode comer um boi. Uma pizza inteira, tem em torno de 1600 calorias. Inteira. Segundo registros, pessoas com bulimia podem chegar a ingerir cerca de 20.000 calorias em um único episódio compulsivo. Em pizzas, isso seria o equivalente a 12 pizzas. E meia. Em cerca de uma hora.

Uma das características da bulimia é a ingestão descontrolada de alimentos em um curto período de tempo. Detalhe que isso é feito sem prazer, uma vez que a comida – praticamente engolida sem mastigar – nem é saboreada. A ansiedade do momento é tamanha que o episódio apenas cessa quando se chega a um mal-estar físico. A sobrecarga digestiva, a alteração metabólica, a culpa e o medo de engordar levam a atos compensatórios, tais como indução do vômito, execução de atividade física até o desgaste integral, períodos prolongados de jejum, etc.

Engolir. Engolir tudo o que vê pela frente. Um problema. Sem saborear, sem sentir o gosto, sem fundo ou com fundo-falso. Um buraco na alma, que nada preenche. Uma fixação oral de voracidade desenfreada. Familiar.

Pois eu engulo mais do que 12 pizzas e meia de uma vez. Eu engulo o mundo. Eu engulo um romance inteirinho em duas horas. Ao viajar, eu engulo a cultura local, eu quero engolir todos os lugares, todos eles, aqueles que ninguém conhece, que não estão nos guias turísticos. Não durmo para não perder nenhuma migalha. Eu engulo todas as ruas, atalhos e desvios. Engulo tudo que ouço, o que me dizem e o que calam. O que escuto, engulo todos os sons. Engulo tudo o que eu vejo. Mesmo se fecho os olhos.

Ainda tem espaço para o que grita, arranha e arde. Eu engulo o amargo, o doce, o salgado, e o azedo, sem sentir o gosto, tudo de uma vez, porque estão lá. O que está ao alcance eu entranho garganta a dentro, o que não está eu vou ir buscar para engolir. E eu sempre encontro. Eu engulo a dor, não só a minha, a dos outros também. Engulo a fome do mundo.

E a miséria, e os olhares de indiferença para as crianças suplicantes nas janelas dos carros, os cachorros mortos e abandonados pelas rodovias, e os bêbados degradados que atravessam o farol em plena luz do dia. Eu tenho que engolir ainda os que tentam me engolir, aqueles homens esvaziados de existência. Eu engulo a dissimulação alheia, as religiões de pau oco, as traições sem fim. Toda essa maldade, toda essa desgraça, toda essa adversidade. Eu engulo a falta.

Me encontro empanturrada até a garganta de tudo isso e tenho que tirar, então vim vomitar aqui. Antes aqui do que em outros lugares, porque senão pra limpar depois vai ser pior. Mas eu tenho fome. Eu tenho fome de justiça, eu tenho fome de um povo em que “ser” esteja antes de “ter”. Em que a palavra esteja antes da lei. Em que se honre e sagre o próprio sangue. Em que a essência seja apreciada antes da aparência. Eu tenho muita fome de respeito e de liberdade, mas não o ideal de liberdade carcerária herdada do século XIX. Liberdade de verdade. De relações de verdade. De sentimentos de verdade. Eu tenho fome de mais sinceridade e menos falsa educação. De entrar de peito mais aberto e menos armado. No amor ou na guerra. De coragem, de força que não seja só de brado. De arte, de sentido, de beleza, de instinto, de expressão, de cor, de espontaneidade. De clareza, de transparência, de humanidade. De mundo. Tenho muita fome.

6 comentários:

  1. Oi!!
    Encontrei o seu blog por acaso. Estava pesquisando sobre o assunto. Tive anorexia por 3 anos, quase morri. Hoje tenho bulimia, e luto contra essa doença a quase 7 anos, ao todo são 10 anos nisso. Me trato a 3 anos, e tenho altos e baixos, mas ainda tenho pelo menos 3 episódios por semana. É muito difícil, é uma doença silenciosa e “secreta”, nem o meu namorado (eu namoro a 6 meses) sabe que tenho bulimia nem sei se ele sabe o que é isso. No passado fui internada algumas vezes. Sofro muito com essa doença e esse texto me fez pensar em algumas coisas. Eu comecei a ler achando que se tratava do tema, mas achei muito interessante sua comparação com engolir o mundo, nunca tinha pensando assim. Talvez essa loucura de preencher algo e de arrancar algo que está demais pra digerir... sei lá!
    Acabei lendo mais do seu blog, e gostei muito do seu jeito de escrever.

    Bem, é isso.
    Um beijo!

    ResponderExcluir
  2. Anônimo.

    Fico feliz que tenhas gostado. As atitudes sempre estao na pontinha do iceberg. Se tu te defines como bulimica ou anorexica, corres o risco de limitar tua existencia a nomeacao de uma sindrome. Talvez se ousar percorrer o que esta imerso no oceano, as coisas se tornem mais claras.

    Beijo.

    ResponderExcluir
  3. Fominha!
    Que texto bom pequeña, tu me surpreende!

    Beijão!!!

    ResponderExcluir
  4. quais os simtomas da bulimia emocional?ela leva a pessoa morte..?um amigo tem bulimia emocional.e quase morreu mas gras a Deus ele esta bem e vivo e isso pode acontecer..

    ResponderExcluir
  5. Anônimo, bulimia emocional foi um termo que eu inventei, uma analogia da bulimia nervosa. A nervosa pode matar sim.

    ResponderExcluir
  6. olá. vim aqui parar por acaso. pesquisei por "bulimia emocional" porque queria escrever um texto e não queria usar um termo em vão, e estava à procura de tudo menos de alguma coisa a haver com a doença. até porque sou uma pessoa bastante magra à procura de engordar. mas o que li no texto, foi exactamente o que me preparava para escrever. "Me encontro empanturrada até a garganta de tudo isso e tenho que tirar, então vim vomitar aqui."

    bom texto.
    beijos

    p.s.: "Anônimo, bulimia emocional foi um termo que eu inventei, uma analogia da bulimia nervosa. A nervosa pode matar sim." afinal sentimos as duas a mesma coisa ao pensar a mesma frase..

    ResponderExcluir