Entre rótulos e conteúdos

                           Fotografia: Rodrigo Brzozowski 


Sempre tive grande apreço por auto-retratos, sejam estes concretizados em qualquer forma de arte, na fotografia, na pintura, na escrita autobiográfica, dentre outros. Retratar-se nada mais é do que fazer um recorte de si. Seja este pela forma como quem o faz se percebe, seja como ele gostaria de ser percebido, seja como compreende o que os outros percebem dele. Repeti tanto essa palavra – perceber – numa catatonia intencional.

Porque percepções são circulares, maleáveis, sugestionáveis, pretensiosas. Na maioria das vezes aquilo que se torna evidente, claro como água, ou facilmente identificável é o extremo oposto da verdade. Existe uma linha muito tênue na verdadeira intenção do auto-retrato. Isso caso tenha alguma, visto que vivemos na era do vazio e a falta de sentido nos permeia cada vez mais, como Lipovestky diria bem melhor que eu. Ou seja, alguém pode se retratar puramente por vaidade. Mas posta a ressalva, a intenção implícita no ato de retratar-se pode conter tanto uma expressão fidedigna de uma parte de si, quanto servir justamente para desviar o olhar de quem vê para o que não pode ser (ou não se quer) que seja visto.

Mario de Andrade acertadamente disse que pessoas não debatem conteúdos, apenas rótulos. Essa é uma frase curta de imensa sabedoria, porém pretendo ir um pouco além dela. Afinal, qual a diferença entre o conteúdo e rótulo? Alguém certamente vai pensar, “ora, a diferença é evidente, o conteúdo é o que a pessoa é de fato, e o rótulo é quem ela se mostra ser”.

Mas se partimos do pressuposto de que o ser humano se constitui, se subjetiva e forma sua própria identidade através da interação, a coisa complica um pouco nessa “evidência”. Partindo desta proposição, precisaríamos mesmo dos olhares e até das expectativas de – pelo menos – um outro, para que pudéssemos de fato ser. Mas ser o que?

Eu acho bem gozado quando vejo alguém se definindo. Inclusive antes de escrever este texto dei uma olhada em perfis aleatórios de orkut, e vai, sei que não é lugar pra pesquisa de campo, mas confesso que faço porque me divirto. Baita pergunta essa do orkut, “quem sou eu”. Tem gente que tenta se definir pelo que gosta: “Gosto de animaizinhos, de florzinhas, do papai e da mamãe” (tirando o papai e mamãe – sem ironia – o resto é verídico, e não era de uma criança). O melhor é quando alguém se arrisca seriamente a responder, do tipo, “Sou uma pessoa calma, tranqüila...”, ou “sou muito alto-astral, de bem com a vida, bem zen...”, etc.

Será que as pessoas não se dão a mais remota conta da superficialidade em que escolhem viver? Será que nos falta tanta propriocepção para além da cinestesia? Quem minimamente se conhece, já se deu conta que a questão é bem maior e vai muito além de qualquer conceito, adjetivo, substantivo, diminutivo ou diabo que o parta.

Rótulos existem não apenas porque quase ninguém nos vê (fato), mas porque a gente mesmo cria para poder se enxergar. Somos produto de nossa própria crença. E somos tantos que somos um para cada pessoa, e cada pessoa é uma (ou varias) para nós, o que multiplicaria a população do planeta por ela mesma inúmeras vezes em termos de rótulos, matematicamente falando. 

E o conteúdo, onde fica? Talvez não fique, talvez o conteúdo seja esponjoso, mutante, camaleônico, infinito como o próprio rótulo. Se assim não fosse, se nosso “conteúdo” fosse imutável, como poderíamos evoluir? De que vale mesmo um diagnostico psíquico? Talvez tenhamos todas as possibilidades dentro de nós mesmos. Talvez nos caiba o intransponível encargo de descobri-las.

5 comentários:

  1. Nossa, muiiiiito intensa tua escrita!!! Amei o texto! Criei coragem pra comentar depois que vc respondeu meu e-mail! :-)
    Beijo da Paula!

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  2. muito bom guria...como nos gregos, quanto mais olha para suas forças, mais percebe seus rótulos e o buraco sem fundo em termos de uma essência ou conteúdo...
    Francis, bj

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  3. não é atoa que teu orkut esta recheado de fotos

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  4. Ana Paula, que bom então, mas eu não mordo quem comenta não, gosto muito de comentários e criticas aos textos. =)

    Francis querido, como sempre, enriqueces com tua presença e comentários.

    Anônimo, não, não é a toa mesmo. A fotografia é uma forma de expressão que me encanta e eu uso bastante. Muito embora lá no orkut não tenham muitos autos. Mesmo porque os auto-retratos que eu considero como os mais expressivos meus, não posso publicar nesse espaço. Chocaria. =)

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  5. Oi Manuela, bom primeira coisa é que tenho que fazer é te parabenizar pelo blog e pela escrita,gostei muito.
    a outra coisa é que me surpreendeu foi ver que voce aí do rio grande do sul se tornou seguidora do meu (modesto) Blog Caixa Preta, gostaria de lhe dar as boas vindas e dizer que pode entrar, comentar e falar o que quiser,e que é uma honra ter você como leitora.
    Vi que você também lê os textos do Gabito do Blog Caras Como Eu(outro blog fenomenal), li um comentário seu, sua escrita me surpreende, espero revê-la mais vezes.

    Obrigado e Sucesso!

    Daniel - do Blog Caixa Preta

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