Paradoxo psíquico


Já muito atordoado, confuso, cansado, o pobre Ego esgotado por ouvir ordens tão distintas, recorreu aos seus desconexos orientadores – Superego e Id – convocando-lhes para um reunião privada entre os três. Ciente do risco do encontro convocou uma segurança treinada, de currículo freudiano e aparente ausência dos seus próprios três, para que assistisse a ocorrência. Como contrato prévio, o Ego estabeleceu com sua segurança o direito de intervir a qualquer momento que achasse necessário, de preferência bem antes que ambos começassem a destruir um ao outro (e consequentemente, a ele próprio).

O encontro, marcado para as 8 horas da manhã já começou mal. O Id se atrasou. O Superego chegou as 7:55, e ficou do lado de fora esperando até fechar 8:00 em ponto para bater na porta. Tinha o cabelo preso, vestia uma calça jeans de cor escura, e uma blusa de cor neutra, um lenço no pescoço, discretos brincos de pérola e scarpins de salto médio. No rosto, um leve brilho nos lábios, um pouco de rímel nos cílios, um sorriso simpático de bom dia e uma postura de bailarina. Sentou-se e cruzou a perna, comentou sobre o tempo e perguntou ironicamente pelo Id. “Ah claro, só podia”.

Depois de uns 10 minutos de espera chegou o Id. Vinha com um Ipod ainda ligado e mascava chiclete de forma que o Superego achava vulgar. Usava um vestido curto, de ombros nus, cílios curvados, maquiagem marcante, sandálias de salto alto, corrente no tornozelo, brincos grandes e pelo menos 3 pulseiras diferentes no pulso. “Tanta pulseira e nenhum relógio”, pensou o Superego, já observando como ia se sentar com aquela saia tão curta. O Id estourando a bola de chiclete desculpou-se pelo atraso, andou até a poltrona e sentou-se numa cruzada acrobática de pernas dando um sorrisinho debochado para o olhar acusador do superego.

Ego – Bem, todos sabem por que estamos aqui hoje. Precisamos agir em equipe e percebo um profundo desligamento entre vocês dois. Entendam que não sei mais o que fazer. Cabe a mim a decisão final, mas as opiniões de vocês dois são completamente opostas.

Id – O Superego é um moralista!

S.E. – E o Id é um animal.

Ego – Ok, atenção! Id, por favor não grite. Não peço que vocês se adorem, mas que possam conversar. Por exemplo, vamos falar sobre a situação atual. É sim ou não, afinal?

Id – Sim, sim, sim!!!

S.E – Lógico que não, retardado! Tu não pensa nas conseqüências dos teus atos?

Id – Pra quê? Quem responde por isso é o Ego, não eu.

Ego – Pois é né?

Id – EU QUEROOOOOOOOOOOOOOOOOO!

S.E. – Mas como grita!

Id – “Mas como grita” (imitando debochadamente). Então me diz, e porque não?

S.E. – Ora, “porque não”. Porque tem conseqüências, tem riscos, é perigoso.

Id – E o que não tem? Se fosse por ti, jamais faríamos nada.

S.E. – E se fosse por ti já teríamos morrido!

Id – Cagão!

S.E. – Maluco!

Ego – Chega já. Por favor, vocês dois. Eu só quero um caminho, uma única direção. Me ajudem.

S.E. – É simples. Basta decidir entre um de nós. Tendo em mente que nosso amigo Id sempre vai dar conselhos sem cabimento, é claro.

Id – Nem sempre. Agora por exemplo, sugiro cortar sua cabeça.

S.E – Ah, pronto! De Alice no País das Maravilhas decidiu virar Rainha de Copas.

Id – Nem vem, quem corta algo aqui é tu, castrador de uma figa.

S.E. – Caro Ego, minha decisão é não. Irredutivelmente. Jamais, nunca mais. Não dê ouvidos ao Id. Ele é imaturo, imediatista, inconseqüente. Sei que por vezes ele te convence, com seu jeito insistente e pidão, mas neste caso especifico devo lhe aconselhar. Decidir por sim pode colocar todos nós em risco, a estrutura enfim. É arriscado demais, há muita coisa em jogo. Além de quê, o próprio Id ficou furioso e desmedido com esta situação. Ele é a contradição em si.

Id – Em minha defesa, não sou uma contradição, sou a tua contradição. Fiquei furioso sim, porém amor e ódio andam juntos, e teu pensamento é tão linear que não consegue entender a flutuação dos sentimentos. A minha resposta é sim porque o sentimento diz sim. Eu sou o que pulsa, e tu apenas um chato que fica importunando nosso caríssimo Ego a todo instante, dizendo-lhe que tal coisa não é adequada, possível, permitida, segura, mas que saco!

O Ego encara a segurança, que lhe olha atentamente. Quando o relógio sinaliza o final da reunião, em um único suspiro ele lamenta:

– Desisto de qualquer tentativa de acordo. Acho que isso vai ser eterno. Me resta a angústia de nunca saber se quem escutei me deu ou não um bom conselho.

7 comentários:

  1. É muito engraçado como visualizamos os personagens e até mesmo seus trejeitos e falas.

    Ficou excelente o texto, meu amor.
    Beijos!

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  2. Tô rido aqui...
    Fico muito intrigado com a forma que você escreve, soa bastante despretensioso porém tem nuances de um engajamento. Me da um prazer ler-a. Porem prefiro você melancolica, hahah, talvez porque eu gosto de me afundar na, tão recentemente falada, tristeza, mas é fato que é um texto bastante inteligente, se eu te conhecesse diria que vc estuda psicologia, mas como eu não te conheço, prefiro ficar no suspense.
    até a próxima...

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  3. dfbiglia@hotmail.com7 de outubro de 2010 às 18:46

    Muito bom mesmo. Mas para um curioso como eu, poderia continuar o texto e contar qual a dúvida.

    Abraço.

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  4. Manu e seus textos únicos!

    Amei pra variar...melancólica ou psiquiatra, rs.

    Beijos

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  5. hahaahaha! Muito bom!

    Gostei do conteúdo do seu blog!

    Beijosss

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  6. Interessante, engraçado e rico em conteúdo.
    O primeiro post que leio seu e já percebo que irei ler os segundos, os terceiros ... e assim vai ^^.

    Adorei a forma que tratou esse cotidiano do "eu" de cada um. ;)

    Já te sigo,
    beijão.

    Ps: Depois da uma passada lá no 86.400, é recém nascido.

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  7. Adorei o texto...
    muito divertido e cheio de personalidade!
    um beijao!
    (ah sim o layout do teu blog ta + vivo gostei!)

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