Felicidade Virtual



Inferno astral, não havia outra explicação, Rita se repetia. O saldo do último mês fora a demissão do emprego, que numa explosão de raiva acumulada teve direito a alarde de impropérios lançados àquele carrasco sem noção do chefe, ter conhecido de longe a atual do ex que tem a maior bandeira de mulher melancia, além da briga homérica com a melhor amiga de infância por ensejo injustificável e estupidamente fútil. Não bastasse chegou a conta do cartão de crédito, a psicóloga entrou em férias, uma variz até então jamais existente lhe surgiu na coxa esquerda, a balança denunciando que doces acumulavam quilos a mais ao invés de afeto, sem falar no cabelo esticado a base de chapinha diária, que na identidade secreta das crespas já havia virado um sabugo de milho.

Nem quis lembrar da situação amorosa, e que andou se encantando com o maior filhadaputa da cidade, na enésima, ridícula e crônica ilusão de que sapos poderiam andar à cavalo. Quis ainda menos pensar em sua família que lembrava qualquer filme tragicômico de nome duvidoso onde nem o diretor suporta assistir até o final. Tudo errado, fora tudo o que já é torto no mundo por si, só podia ser algum complô persecutório dos astros. Carma quiçá, matutava.

A insônia, permeada de tédio e tendência autodestrutiva a faziam atravessar madrugadas cotidianas na virtualidade das redes sociais, por onde espionava milhares de fotos, comentários, recados, vídeos e publicações de amigos, inimigos, ou desconhecidos completos com alguma ligação entre os primeiros. Pela tela, via a amiga feinha dos tempos de colégio, agora enxuta e repaginada, tomando champagne a bordo de uma lancha ao lado de outras mulheres com rosto e corpo de comercial de cerveja, uma mais abrolhada que a outra, todas com aquele inescrupuloso sorriso de sou-linda-gostosa-rica-me-basto-morda-se. Em outro um rapaz que há muito tempo não via e por quem ela teve a maior e mais patética paixão platônica da história dos segundos-graus, casava com uma loira que parecia de plástico. Brindavam e dançavam com aqueles olhares de até que a morte nos separe, mas quem morria mesmo era Rita, de inveja.

Todos os seus amigos, amigos de amigos, e amigos dos amigos dos amigos, eram só sorrisos: casavam, se formavam, viajavam para Europa, esquiavam, tinham o cabelo reluzente e usavam fio-dental na praia sem medo algum. Famílias se abraçavam no Natal, cujos registros eram legendados com melhor mãe, pai, sobrinho, cachorro ou papagaio do mundo. As pessoas eram promovidas, recebiam aumentos, faziam pós graduação no exterior, coisa e tal. Ninguém tinha barriga, crise existencial, solidão, coração arrebentado, desilusão. Não se via ninguém espumando de ódio por ter que pagar impostos absurdos todo ano pra ter o que já se tem e que já foi pago, espumando por lá, só champagnes. Se perguntava se ali nenhum sujeito sentia, ainda que só vez que outra, a alma inteira encolher e embolar no meio do peito por qualquer coisa, decepção, tristeza, perda, meninos com a infância roubada que aparecem pedindo alguma esmola de dinheiro e dignidade nas sinaleiras.

Será que pra ninguém mais dava errado, não acontecia, ou acontecia justamente o que nunca deveria ter acontecido? Será que a única azarada seria ela? Já estaria autorizada a começar a sentir pena de si mesma? Ou talvez, existiria algum mundo ao qual ela não tinha acesso. Sem fome, sem mágoa, sem lugar esquerdo da cama e do peito vazios. Um lugar que nunca toca funk, todos tem pele boa, são belos, unidos e se amam na saúde só, porque nem doença deve existir. Nada de caos, tumulto, algazarra interna, trânsito, ódio, injustiça, onde famílias sentam em uma mesa decorada com flores e frutas no meio do jardim aos domingos. Um mundo feliz, do qual ela tinha ficado de fora. Sentiu o desalento pegar fundo, e antes de desligar o computador e dormir pedindo para não acordar mais, ela entrou em seu próprio perfil. Se chocou com o que viu.

Lá estava ela na praia, sorriso largo pra foto que nem parecia falso, melhor forma física que já teve, após dois meses de dieta da sopa. Na outra, entre pessoas que até pareciam amigos de infância, gente que na verdade mal conhecia, mas encheu a cara junto na formatura da Fernanda e posou abraçado. Em outra, uma viagem que fez pro nordeste, paga em todas as prestações possíveis, quando conheceu lugares paradisíacos. Tinha uma lá do ano-novo de uns quatro anos atrás com a família, quem visse até pensaria. Em todos os registros ela aparecia bonita, despreocupada, leve,... feliz. Então Rita entendeu tudo e foi dormir bem mais tranqüila. Estava sim, dentro.

2 comentários:

  1. hahaahahahaha
    Muito bom o texto, meu amor!

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  2. Pois é....

    No mundo virtual tudo é de plástico e sempre achamos que a grama do vizinho é bem mais verde que a nossa.

    Ilusões, sempre elas.

    Bjs

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