Bem-casados



Se Shakespeare estivesse vivo e assistisse a entrada de uma noiva em uma cerimônia de casamento atual, provavelmente puxaria um bloquinho durante o sermão do padre e passaria o tempo descrevendo-a com a mesma fibra de tempos remotos. Eis que esplendorosa, trajada do brilho lácteo e brancas sedas, pelas portas adentra em direção ao altar. Sob o olhar furtivo das donzelas, admirado dos cavalheiros, e hipnotizado dos querubins, flutua distribuindo em lampejas púrpuras o sorriso cintilado em marfim e quimeras de encantos de fadas.

A cerimônia de casamento é bela. Estive recentemente em uma e algumas coisas são rotineiramente observáveis. Reitero que aqui me refiro aos casamentos “moderninhos”, desses que se casam por amor, visto que aqueles a “moda antiga” ainda existem as pencas. Dentre a turma high-tech, toda noiva em dia de casamento é bonita. Todo noivo sua o colarinho de nervoso, no momento prévio ao altar. Toda noiva entra triunfal na Igreja, e todas elas tem um sorriso tão gracioso e aberto, hora com covinhas abaixo do brilho dos olhos, hora com a meiguice das bochechas rosadas, os cílios curvados, e o coração entregue.

Todo o noivo desfaz-se da tensão e da testa enrugada, ainda atordoado de tanto ter andado em círculos ante os convidados na espera, abrindo em reflexo o mesmo sorriso puro ao vê-la, dividido entre o menino impaciente que aguarda o dia de Natal para abrir seus presentes, e homem que espera tão mais impaciente pela hora de reafirmar seu amor à mulher de sua vida. E frente a estes dois, a única coisa possível a se desejar no íntimo, é que sejam felizes.

Eis que então por praxe cerimonial, chega a parte do juramento. A jura, todos sabem, vale até que o silêncio, ou o tédio, ou as crises existenciais, ou a própria convivência, ou tudo isso junto, os separem. O que é a própria morte. Não da vida, mas da relação. O artifício do juramento, no entanto, me incomoda tal como me incomoda toda e qualquer fala ensaiada, não espontânea. Mas esta em especial, não apenas inclui a categoria, como está incompleta, deveria ser repensada e reescrita.

O problema está em seguir a tradição. Ligadas ao valor da propriedade, à conquista das terras e aos acordos políticos entre a nobreza, o casamento era essencialmente um ato de aquisição, moda que teve inicio marcado na Roma antiga. Confundir casamento como conquista de vida é uma armadilha. Eu me formei, plantei uma árvore, fiz algum bem ao mundo, consegui uma colocação melhor no meu emprego, e me casei. Seguir conquistando, em movimento contínuo é o que demanda a sobrevivência da união de escovas de dentes. Frente a isso, talvez outros pormenores deveriam ser indagados ao noivos.

Primeiramente, se concordam em jamais terem neste dia um marco de garantia da presença do outro, retirando-lhes da responsabilidade de seguir conquistando seu parceiro dia após dia, sempre tendo em mente que nos tornamos eternamente responsáveis por aquilo ou aqueles que cultivamos. Aceitam? Também poderia estar incluso se concordam em respeitar o silêncio quando é preciso, assim como a liberdade e individualidade com a mesma importância que possuíam antes deste dia, mantendo independência um do outro, cultivando interesses, amizades, sonhos, aspirações e espaços próprios. Sim ou não? 

Acrescentaria ainda se ambos concordam em se esforçar para serem “artistas no próprio convívio”, trazendo um pouco de poesia para a vida escrita em tom de noticiário, um pouco de melodia para o tumulto das cidades, um pouco de luz para o escuro das noites, um pouco de luar para o meio dos dias. Se pretendem dar menor importância paras as toalhas molhadas sob a cama e os sapatos espalhados pelo chão e maior  para a singeleza dos pequenos atos, como a janta sobre a mesa, massagem no pé, cerveja no gelo, embalo de rede, cafuné antes de dormir, e bilhetinhos na geladeira. Ainda somaria jamais dormirem de costas com raiva um do outro, deixando que as discórdias se acumulem por preguiça de discutir a relação, e exercitando arduamente a compreensão, o companheirismo, a fala, a escuta, os beijos e abraços. De acordo?

Estes são pressupostos básicos de convívio entre um casal, mas a verdade é que não existe receita pronta, como a dos “bem-casados” que a gente leva de lembrança. São tantas outras milhares de coisas que compõem um casamento, seja ele na Igreja, seja em resolver dividir o guarda-roupas sem maiores cerimônias, que poderíamos entendê-lo como construção. Cabe ao casal, em nome do próprio amor, encontrar a rima, a prosa, e o verso frente a uma nova biografia, escrita ou reescrita a quatro mãos. Aos noivos, uma feliz inspiração.

Um comentário:

  1. Manuuuuuuuuuuuuu, que texto ótimo!

    O engraçado foi que cai aqui no teu blog procurando idéias de bem-casados, e não é que achei? Risos.
    Mandei o texto para o meu noivo (nos casamos em maio de 2010), acabamos virando fãs!!! Ótimos textos!
    Deixo uma sugestão, você poderia colocar no final dos textos aquela opção para enviar o texto, ficaria mais fácil.

    Beijo!

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