Sorte no jogo?





Os dois eram tão ou mais espertos. Se encontraram por um presente daquilo que, por não se saber o nome, chamamos acaso. Ele um romântico disfarçado de canalha para não parecer otário, ela uma romântica disfarçada de realista, para não parecer ingênua. Cruzaram olhares, palavras e gestos, depois telefones, línguas e sonhos, esses últimos é claro, cada um pra si.

Tinham várias coisas em comum, dentre elas, a juventude, um histórico de desilusões, o medo de serem feitos de idiotas, e o bem-querer um pelo outro. Ela era bela, dessas belezas bem raras, com capacidade de iluminar o vazio escuro de uma balada vulgar. Ele guardava relíquias no peito e nos poros, e possuía um ar de tristeza boêmia onde qualquer bom espectador poderia colher de suas pegadas o rastro de poesia deixada para trás, em cada passo.

Ele se acostumou a fazer sexo seguro, sem risco de afetividade. Ela, a negar fazê-lo. Nenhum dos dois virou robô da juventude esvaziada, mesmo que resguardada e protegida ambos ainda carregavam a verdadeira existência no íntimo. Mas não, nenhum daria o braço a torcer. Mulheres gostam de homens que não lhe encham o ego. Homens gostam das mulheres difíceis. Ambos eram convictos de que pertenciam a planetas distintos, Marte e Vênus precisamente, guerra nas estrelas.

Então ele não ligou no dia seguinte. Prometeu que ligaria, mas esperou até o sétimo, numa estratégia bíblica de construção de mundo. No primeiro dia, o nascimento da interrogação. No segundo, o palpite das amigas. No terceiro a busca por defeitos próprios. No quarto, pelos dele. No quinto a lembrança de tudo que não é, e por isso já é triste. No sexto a desesperança. E no sétimo então, nada descansado, ele liga.

Ah não, mas claro que ela não atende. Afinal de contas, ela não é fácil, não é qualquer uma, ela é ocupada, ele não é o único que a deseja, ela tem vida, a artimanha falhou. Ele tenta de novo, e ela com o celular na mão como se fosse coração, deixa que pulse. Trim-trim, tum-tum. Nem aí. Agora ele vai ver o que é bom. E agora ela vai ver que não sou um idiota qualquer.

Ambos pediam para não caírem na tentação do mundo online. Como é difícil manter o falso desinteresse quanto a tela grita acessibilidade à vida alheia. Maldita era da comunicação quando a proposta é não se comunicar. Ele não visitava o orkut dela, para que seu nome não ficasse gravado. Ela visitava o dele, depois de ter trocado a configuração de visitas. Ele entrava no MSN, e o coração dela saltava aos olhos. Bastava ela entrar para que ele sentisse lhe congelar o sangue. Mas nenhum seria louco ou tolo o bastante para ofertar a primeira palavra.

Quando encontravam uma desculpa ajustada para que o descaso não corresse valo abaixo, ela se preocupava em opinar de forma inteligente usando chavões teóricos, ele, em desfazer suas opiniões. Concorriam em quem via mais filmes cults, lia mais ou menos Platão, ia mais ao teatro, entendia de arte Renascentista, ou sabia sobre o lado B dos grandes gênios da literatura. Ela se perguntava se a analogia dele sobre os pré-socráticos falava algo sobre ela. Ele tentava juntar os quadradinhos da ultima imagem de Picasso que recebera por e-mail, na busca por alguma via estética de dizer que ela o queria.

Sempre que ele ligava, o celular dela estava fora da área de cobertura ou temporariamente desligado. Ele nunca podia falar naquele momento, e perguntava se não poderia telefonar depois, coisa que jamais faria no mesmo dia. A despeito do inexistente acaso inicial, seguiam forjando desencontros intencionais. Tudo em nome do jogo. Passaram-se meses de silêncios forçados, desinteresses fingidos, descasos maquinados. Passou do ponto. “Não era pra ser”, ele disse. “O que é meu está guardado”, ela pensou. Nunca ficaram juntos. Eram bons jogadores, e quem tem sorte no jogo paga o preço do azar naquilo pelo quê se joga. Ou no único saldo que valeria, no fim das contas. Eu canso de ver tanto amor jogado fora.

4 comentários:

  1. Quem é mais idiota? Os jogadores (entre os quais me incluo atualmente) ou os apaixonados?

    Fica a questão. Eu preferiria estar entre a segunda opção. Hora dessas eu me dou conta.

    Bela abordagem.

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  2. eu já cansei de jogar. mas dizem que isso vicia. droga!

    texto maravilhoso.

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  3. Belo texto... acontece mto.

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  4. Sou uma péssima jogadora. Fato!
    Muito bom teu texto. De verdade!

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