O (re)encontro* - Parte I





*Série : “Contos e Desencontros”.




Ela se aproximou por pura insistência, mas ganhou minha amizade por competência. Não tínhamos nem duas décadas de vida, mas sentíamos tal como idosas descontextualizadas observando nossos representantes na juventude esgotada. Compartilhávamos a paixão pelos palcos e platéias, a revolta incurável e aquele vigor incansável em querer mudar o mundo começando por si.

Ela me fez – por mérito irrestrito – admirá-la, respeitá-la e amá-la. Era livre, era brutal, tinha uma das mentes mais ativas que já havia visto. Não tínhamos diploma ou título, mas os vários feitos cotidianos nos valiam mais do que qualquer papel na parede que comprovasse qualquer falsa identidade. Apesar do frescor de nossa pouca idade, havíamos percorrido mundos ainda não descobertos pelas massas ou esferas.

Nossas escolhas nos separaram. Eu escolhi a trilha tradicional do medo prestando vestibular. Ela escolheu cair de boca no mundo. E caiu, em vários sentidos. Juramos jamais perder o contato, mas não cumprimos. Eis que anos após aquela adolescência tresloucada, através de um telefonema inusitado em plena e pacata quarta feira, escuto uma voz familiar d’outro lado da linha. “Salve”, ela disse com uma entonação menos impositiva do que costumava me saudar.

Tinha voltado, tinha casado, morava noutra cidade, não era longe, precisava me ver, não sabia exatamente por que, mas sabia que era urgente. Sábado daquela mesma semana eu já carregava o porta-malas do carro prestes a passar o final de semana numa cidadezinha da serra gaúcha, sem saber o endereço, o telefone fixo, nem quem ela tinha se tornado, já que reencontros são sempre reconhecimentos.

Telefonei ao entrar na cidade, e ninguém me atendeu. Sem saber para onde ia, parei em um café para decidir por quanto tempo ia seguir telefonando até fazer o caminho de volta pra casa, descarregar o porta-malas, recolocar as roupas no armário, a saudade no peito, a indiscrição na impossibilidade e todas as palavras não ditas em textos, destino amargo que um bom expresso parecia amenizar.

Antes do café chegar meu telefone toca novamente, e ela agora ao descobrir que eu já tinha chego, me explicava o endereço de sua casa numa imediaticidade verborrágica que me deixava sem saber o que fazer. Anotava tudo em guardanapo? Registrava as informações no gravador da máquina fotográfica? Pedia a gentileza em poder ditar as coordenadas para garçonete sorridente que amigavelmente transcreveria em seu bloquinho de pedidos? Ou apenas não ouvia nada do que não parecia ser preciso escutar e perguntava o que estava acontecendo? Optei pelo guardanapo, pedindo para ela soletrar e me dar tempo.

Sem dúvida algo estava acontecendo, constatação que nada me ajudava em qualquer diagnóstico hipotético, porque sempre existe algo acontecendo. Tomei o expresso queimando a língua e decidi ir logo. Me perdi por pouco tempo, o que já é excepcional. “Uma casa creme com margaridas na entrada e um muro pequeno na frente coberto de trepadeiras”. Me parecia algo tão trivial para ela. Se ela me dissesse que morava no alto de um penhasco ou em cima de uma figueira creio que acharia mais apropriado.

Acabei achando a tal casa creme mais pacata e menos ela que já tinha visto. Estacionei na rua de paralelepípedos, no espaço cedido pelos meninos que ali jogavam bola. Das janelas da frente beiradas com flores, à entrada de pedras em contraste com a grama recém cortada, indo até as sombras das árvores vizinhas, todos os elementos compositivos pareciam me dizer que eu estava no endereço errado. Conferi o número da casa e o nome da rua novamente e não estavam.

Busquei-a na memória. Cabelos, língua e sorrisos soltos. Bela. Peculiarmente encantadora. Era o que a memória me oferecia. Sai do carro, passei pelo caminho de pedras dispostas na grama, toquei a campainha, que parecia ter feito TUM-TUM ao invés de TIM-TIM. Um homem alto atendeu, e disse que eu deveria ser quem eu era de fato, me chamando pelo nome como se tivéssemos sido apresentados.

Me convidou para entrar, se ofereceu para descarregar meu carro, checou meus seios, trouxe as malas para dentro, explicou que ela havia dado uma saída e já voltava, me mostrou meu quarto de hóspedes em cima das escadas, checou minha bunda, e antes que eu gritasse ouvi a voz dela. Meu queixo quase caiu de uma altura de 1,60 m quando a vi.

(continua...)


Um comentário:

  1. Gostei muito do jeito de descrever tudo. Ficou bem palpável e bonito!

    Aguardo, às garras, a continuação.
    =)

    Abraço,

    Marina

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