O castelinho de ilusões



Já estou dentro do castelo quando dou por mim. O chão espelhado, além fazer o ambiente tomar dupla proporção, me força a assistir meus passos em ângulo inferior. Acima de mim, um teto colossal, decorado com fotografias de partes do meu rosto sobrepostas, confusas, formando um mosaico disforme de mim mesma, que eu não gosto de olhar. Ao meu redor só o que vejo são 7 portas. A curiosidade me toma, e abro a primeira.

É uma sala abarrotada de gente, de todos os tipos. Imediatamente a porta atrás de mim se fecha, e tento abri-la sem sucesso. Pergunto o que esta acontecendo, como eu saio de lá, e todos respondem ao mesmo tempo, apontando para as mais distintas direções. Não há espaço, não consigo respirar, as pessoas me puxam, e riem diabolicamente, eu me lembro de Sartre e penso que devo estar no inferno. Vou empurrando as pessoas no meu caminho, porque não encontro outra forma de tentar achar algum.

Elas me puxam, puxam minhas roupas, se espalham pelo meu corpo, e milhares de mãos seguram meus braços. A algazarra conjunta de vozes e falas indistinguíveis me angustia de forma tal que sinto vontade de arrancar meus tímpanos. Estou assustada, sem saber como sair dali, se há saída, e me abaixo simplesmente, no meio da multidão, tapando os ouvidos. Sinto me pisotearem, e grito, e meu grito se confunde no meio da balbúrdia, e ninguém me escuta, nem me vê, e aquilo é tão familiar que eu não quero nem explicar o quanto. Sou cuspida por alguma força misteriosa para fora da porta, que repentinamente se abre, e vejo o povo correndo na minha direção e porta se fechar fazendo um estrondo que ecoa por todo o castelo.

Permaneço alguns minutos no chão, sem forças. Levanto-me cambaleante e caminho até à segunda porta. Sinto um medo abissal em abri-la, ao mesmo tempo que minha mão já gira o trinque, e nesse momento eu penso no quanto é o meu medo quem me faz abrir portas. Eu vou abrindo devagar, e ela faz um barulho que me lembra qualquer filme de terror mal-feito. Uma penumbra me permite apenas distinguir a silhueta dos móveis antigos, dispostos numa composição melancólica, de ar londrino. Aos poucos percebo o papel de parede estampado, poltronas listradas, vasos com flores artificiais, as cores são mortas, tudo me parece completamente sem vida.

Escuto um choro de criança, e a procuro por tudo. Até que vejo um pezinho perto de uma janela cerrada, atrás da longa cortina, que arredo imediatamente e vejo uma menininha. Ela cobria os olhinhos com as mãos, tão assustada quanto eu não demonstro nunca estar. Eu tento acalmá-la, lhe pedindo para não chorar, nem ter medo, e então sinto aquela força me puxando para fora da sala novamente. Tento me segurar em qualquer coisa, não quero deixá-la sozinha, mas a força me expele impiedosamente e a porta se cerra. Eu sinto uma culpa tremenda, uma sensação de fracasso, fico por algum tempo batendo na porta desesperadamente, tento arrombá-la. Em vão.

Percebo que tenho que seguir. Não há outra coisa a fazer. E abro a terceira porta esmagada pelo peso da minha própria impotência. Dessa vez é um quarto. Ele é pequeno, claustrofobico, feito inteiro de aço. Tudo ali é feito de aço, as paredes, a cama, os travesseiros, o armário, os objetos. Tem um imenso espelho pendurado na parede ao lado da cama, e me coloco de pé a sua frente. Ao invés de um reflexo humano, eu vejo minha forma robotizada. Olho imediatamente para meu corpo, que continua igual. Mas o reflexo é o de um ser de lata. Programado para sorrir, para dizer bom-dia, para reagir com cautela, para cumprir sem margem de erro todas as tarefas. Não consigo encarar o reflexo, e fecho os olhos. Quando me vejo, já estou no centro do palácio, com quatro portas a minha espera.

A quarta e a quinta porta, tinham uma passagem direta entre uma e outra, como uma continuação. Ambas eram o meu passado. A primeira, um passado remoto e a segunda, recente. Todos os crimes, todas as dores, as inocências perdidas caminhando junto com sonhos desfeitos em formas ectoplasmáticas. Os amores bem ou mal vividos, as perdas, os bons momentos, os livros, os discos, os filmes, as cartas, as fotografias. Meu primeiro sapatinho, meu primeiro desenho, meu primeiro caderno, minha primeira vez, minha primeira queda na realidade, meu primeiro veneno anti-monotonia. O quadro de medidas que meu pai costumava marcar o meu tamanho com o ano, “Manuela, 1989, 1,23m”. Cadernos, diários, agendas, alguns sons e cheiros, que me inundavam de recordações e saudades. Não queria mais seguir. Queria permanecer ali estacionada, não porque me sentia bem, mas porque me sentia presa, como se não houvesse outra escolha. Nesse momento fui novamente lançada ao centro do castelo.

Obrigada a deixar aquelas portas para trás, abri a sexta. A sala era gigantesca e parecia vazia, completamente vazia. Chegava a ser grotesco. No primeiro passo que dei, eu simplesmente caí. Mas ela não tinha chão. Eu estava em queda livre. Ela não tinha fundo. Eu apenas caía. E enquanto caía, via ao meu redor as inúmeras coisas que eu  inutilmente uso para tentar me segurar, ou para preencher caricatamente aquele espaço vazio. Todas elas estavam ali, sem exceção, e todas ali reunidas pareciam minúsculas, totalmente incapazes de cobri-lo, pareciam uma piada. Ali eu vi o tamanho do buraco que a minha alma tem. Foi aí que voltei, não sei como, da queda ao centro do castelo.

Eu tinha que abrir a última porta. Andei até ela, e respirei fundo. Pensei um pouco antes de agir, como sempre não muito. Eu abri. Uma ventania veio em fúria para cima de mim. Dei um passo para frente, de olhos fechados, juntando toda a coragem que me restava. A porta bateu em explosão atrás de mim. Abri os olhos, e vi uma praia. Não era uma praia comum. O mar era negro, com ondas violentas, nenhuma vegetação ao redor, e a areia a minha frente tinham pegadas tamanho 35 em direção a água furiosa. Estrondos de trovão sem raios. Um ar gélido tomou conta dos meus pulmões, entrou na minha corrente sangüínea, e começou a me congelar de dentro para fora. Ali eu entendi.

Voltei ao centro do castelo, ainda tremendo de frio. Me deitei no chão, de braços abertos. Uma das partes do mosaico do meu rosto caiu do teto, e se espatifou no chão perto de mim. Foi quando vi que ele estava prestes a desmoronar. Permaneci deitada, de braços abertos. Eu tinha uma calma inacreditável para aquela situação, vivia o paradoxo da minha própria calma, eu já sabia ali. Foi quando acordei. Depois disso a minha analista finalmente concordou comigo que meu inconsciente é sarcástico e cria metáforas cinematográficas.


Um comentário:

  1. rsrsrsrs...o final foi muito engraçado...mas, me senti um pouco Alice no país das maravilhas lendo o texto...por sinal, a escrita que mais curti das que li de vc Manuzita...parabéns por este passado cheio de efeitos borboleta!

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