Diário de Adolescente


A adolescente debruçada sobre a cama, estica o braço até o criado-mudo e lança mão de seu diário. Sente um ligeiro perfume de jasmim ao folhear as páginas cor-de-rosa cujas linhas guardam confissões que jamais dividira com alguém. Pensamentos soltos, de uma liberdade que o mundo fora delas jamais suportaria, símbolos que representam em letra tudo que já sentiu em sua breve vida púbere. Ao fundo, o som em alto volume remetia a uma juventude antecessora, esfumaçada pela trilha do musical Hair.

Inicia com a data, como de costume, e então escreve: “Dentre todas as afrontas, incluindo aqui a injúria e a ingratidão, nada é tão insuportável escutar quanto...” A frase é interrompida pela previsão do refrão da música, que adorava cantar alto. Enche os pulmões de ar pronta para desatar um audível leeeeeeeet the sunshine, quando seu pai invade o ambiente sem bater na porta, como sempre. Ela quase engasga ao engolir o ar de volta. “Filha!”, diz gritando, caso contrário não será ouvido. “Baixa essa coisa, tenho que falar contigo!”. Ela afunda a cabeça no travesseiro, imóvel. O pai toma frente e acaba com a música arrancando o fio da tomada, já que nunca achava o botão certo numa rapidez que pudesse impor alguma veracidade a sua, já tão frágil, figura de autoridade.

- Filha, temos que conversar! (diz em tom impositivo).
- Tenho escolha? (ela quis só pensar mas disse, sem levantar o rosto do travesseiro).
- Senta direito faz favor!
(“Faz favor”, ela pensa, essa corrupção de um “por favor” que virou ordem. Senta na cama, contrariada.)
- Quero falar sobre o seu futuro! Daqui a pouco você acaba o ensino médio, já pensou o que vai fazer no vestibular? Estive pensando, e acho que tu deves fazer algo relacionado à administração ou finanças para que possa vir trabalhar comigo.
- Bah pai, pera lá, não vou fazer o que tu quer, vou fazer o que eu quero!
- Ah claro, e o que tu quer então?
- Não sei ainda.
- Ah sim, claro que não sabe. Aliás, nem pensa nisso! Porque pra você o dinheiro magicamente aparece, assim, puf. Vive nesse mundo da lua, de discos, e teatro, bandas, aulas de dança, lambuzada de tinta, e sei lá o que mais que não é da órbita terrestre! Aliás que coisas são essas penduradas na tua parede?
- Olha aqui pai, eu não tenho culpa alguma se tu é um completo analfabeto de arte. Nem mesmo que não posso resolver as tuas frustrações em não ter feito as coisas do jeito que tu querias ter feito, isso não se resolverá através de mim. E são posters, pai.
- Arte! Sim arte! Um maluco de calças de coro que grita em cima de um palco é arte. É isso que você quer fazer da sua vida, arte? Vai viver de quê? Virar hippie e vender artesanto? Essa é tua idéia de vida artística? Escuta aqui moçinha, hoje tudo é muito fácil, a tua vida é toda muito fácil, mas existe uma coisa chamada fluxo natural das coisas. Tu já estas com 16 anos! E a vida funciona assim: tu vais sair da casa dos teus pais e vai ter a tua própria casa, carro, dinheiro. Pra isso tu vais estudar, trabalhar, te ralar, pra viver o resto da tua vida trabalhando e te ralando em algo que te dê uma vida digna! Chama FLUXO NATURAL DAS COISAS! Escutou bem? Eu posso escrever nessa tua parede aí que já virou mural de tantos rabiscos que tem!
- É uma bela visão de futuro, papai.
- Tu deixa de bancar a engraçadinha comigo! Na vida as coisas não são como tu queres! Agora até parece que são, o mundo é do jeito que tu quer, tudo é tão fácil! Mas vai te preparando, e muito, porque lá fora, lá fora o mundo é outro! Lá fora não tem mão na cabeça, não tem perdão, não tem dor de barriga, lá fora se come merda mesmo! E tu vai rapidinho perceber que nada é como tu quer que seja!

Ela calou. Alguns minutos de silêncio se estenderam, e seu pai se levantou em direção a porta, sinalizando que a conversa havia acabado. Antes que saísse do cômodo, satisfeito pela prestação de serviço paterno em dose de realidade discursiva, a adolescente diz:

- Bem. Se hoje a vida é como eu quero, talvez ela deixando de ser seja uma visão bastante otimista. Vejamos... Hoje eu vivo aqui, na tua casa, e tenho esse quarto aqui que é meu, todas essas coisas que gosto ao meu redor. Quando eu era pequena, eu também tinha tudo o que queria. Fui criada pela minha babá, já que tu e a mamãe estavam se esforçando muito para me dar uma vida bacana. Aí me apeguei muito a ela, mas a mamãe a mandou embora porque descobriu que tu andavas te engraçando com ela. Não suficiente, comeu a secretária, que foi quando a mamãe foi embora também, e não voltou mais. E ainda não o bastante, tu resolveu trazer a secretária pra morar aqui com a gente, e hoje ela também tem coisas bem legais e que ela gosta ao seu redor. Tem mais um caminhão de roupas, um armário cheio de perfumes, maquiagens e cremes caros, conhece a Europa, Estados Unidos, e vários hermanos latinos. Já comeu nos melhores restaurantes do planeta e já esteve hospedada em alguns dos melhores lugares do globo, fora que hoje dirige um carrão. Além do mais, tem planos promissores para o futuro, como ter um filho contigo, aquela máxima de pequenos herdeiros, grandes negócios. Então, levando em conta que não tinha casa própria pra morar, nem carro, nem cultura, nem porra alguma, e nem é tão mais velha do que eu, e hoje conquistou tudo isso, sabe papai, acho muito mais coerente com o teu discurso e exemplo, e para meu futuro seguir a trilha do sucesso, que eu curse secretariado. Então quem sabe, minha vida pode ser que nem tu dizes, comendo merda sem tempo pra dor de estomago, mais ainda assim, digna. Mas ainda assim papai, talvez, ao invés de trilhar esse caminho mais velho e mais real do que o mundo, eu vá preferir algum outro, desses assim que ficam bem longe destas órbitas terrestres.

O pai bateu a porta numa fúria que poderia tê-la arrancado da parede.

E a adolesceste, calmamente, recolocou o fio do som na tomada, deixou que a mesma música voltasse a tocar, debruçou-se novamente sobre a cama, e completou a frase que havia iniciado.

“... a verdade.”




2 comentários:

  1. Nossa! Escutar a verdade é uma merda mesmo... Eu que sei!
    Beijo Manu!

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  2. Concordo, a verdade dói mais do que qualquer coisa.
    Mas também nunca fez mal a ninguém!
    Adorei a crônica!!!

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