Das coisas findas - Parte I


Já havia algum tempo que o quarto de Rômulo havia crescido. Aliás, não somente o quarto, mas todos os cômodos da casa. Já fazia meio ano que isto passara a lhe incomodar com maior frequência. A ampla sala de estar com paredes de vidro era iluminada indiretamente por luminárias, o luxoso tapete felpudo permanecia estrategicamente disposto ao centro, enquanto móveis de aspecto moderno e antigo harmonizavam entre si, moldando o ambiente. A ampla sala-de-estar, assim como os demais cômodos da casa, ainda permaneciam intactos, como se sua residência inteira tivesse se transformado em um sombrio altar à ausência, um relicário de faltas. Lhe parecia incrível a presença da ausência, a ponto de quase se tornar tangível, como se a qualquer momento ela se materializasse e ele pudesse tocá-la, conversar com ela, ou mesmo sentir sua presença gelada sobre a pele. As paredes monocromáticas ainda estavam repletas dos quadros adquiridos em exposições de artistas deconhecidos e duros demais ou de alguns mais experientes em decadência, que Isabelle lhe fazia insistentemente frequentar e não somente, gastar uma pequena fortuna por algo que Cauã, seu filho, agora com sete anos de idade, poderia lhe fazer de graça desde os dois. “Aglomerados de rabiscos”, era o que costumava dizer, enquanto Isabelle revirava os olhos com o eterno ar adolescente de reprovação que sempre mantivera.  

          Isabelle era arquiteta, mas havia se especializado em decoração de interiores antes de Cauã nascer. Era apaixonada por aquilo e dizia que uma casa era um templo e deveria refletir o estado de espírito de seu proprietário. Ela realmente acreditava nisto, e embora tenha sido ela a responsável pela decoração da casa inteira, nada ali presente combinava com seu atual estado emocional. Bem, fora o fato de a casa ter se tornado grande demais. Ou ele, pequeno. Poderia estar mesmo encolhendo com o passar dos anos, já havia lido sobre isto. Já haviam se passado três anos desde o dia em que chorara encolhido e abraçando os joelhos naquele enorme e confortável sofá por nada menos que seis horas ininterruptas. Nunca mais chorou novamente depois daquele dia e as vezes realmente acreditava que aquele fora o dia de sua morte e que desde então, perambulava apenas achando que ainda era composto de matéria orgânica, enquanto na realidade era uma alma penada e perdida que perdeu a passagem para o "Outro Mundo". 

           Rômulo conseguia entendê-la, ele mesmo não fazia idéia de como ela havia um dia casado com ele. Cauã agora morava com a mãe e com um padrasto a quem Rômulo chamava de “O Idiota” e a quem seu filho agora chamava de pai. Fora o golpe mais cruel que sofrera na vida desde que sua memória permitiria lembrar, ver aquele menino com traços idênticos aos seus, chamando O Idiota de pai. Uma afronta que lhe fazia enriquecer a indústria farmacêutica mensalmente, já que não conseguia fazer terapia por achar demasiado dolorido. Já havia se conformado em ser um covarde, o que também era o real motivo de Isabelle, após sua décima quinta decepção – ela havia contado – não ter nunca mais voltado, embora ela mesma nunca houvesse dito isto a ele.

             Seu egoísmo sempre havia conflitado com a maneira cuidadosa e afetuosa de Isabelle. Ele se sentia quase que organicamente incapaz de não machucá-la. A cada vez, saberia que a culpa que sentia o faria atravessar meses tentando se redimir, enquanto ela reagiria da pior forma, e finalmente como uma virada do jogo, passaria a atacá-la e a destruí-la por dentro. A raiva que sentia pelas reações da esposa – ex-esposa, ex-esposa,  tinha que se corrigir sempre – era sentida com o alívio de quem arranca uma estaca do peito. Enquanto sentia raiva, não precisaria se sentir culpado. Sabia, no fundo, o quão injusto era tudo aquilo, mas evitava ao máximo este tipo de pensamento, com medo de acabar como aquele ator que após uma sequência profissional desastrosa e auto-destrutiva caíra no ostracismo, para após isto se enforcar no banheiro. Só ele mesmo sabia o quanto se identificou com este sujeito quando a notícia de seu suicídio inundou os tabloides, mas preferia manter-se alienado desta consciência.


          Havia conhecido Isabelle numa viagem de um mês que fez para Europa quando ainda estava na faculdade, mais precisamente em Paris, e o fato de morarem em cidades vizinhas e voltarem de viagem no mesmo dia faziam ambos pensar que protagonizam uma história de cinema, idéia que fora perdendo o seu aspecto sagrado, assim como tantos outros marcos sagrados que foram lamentavelmente destruídos, arrancando de dentro do peito dos dois um pedaço da alma, cada vez. Sentia-se um criminoso por isto, embora tentasse de todas as formas se convencer de que estava melhor assim. Procurava não se olhar muito no espelho, mas invariavelmente tinha que fazer isto para se barbear pelas manhãs. Seus olhos já tinham adquirido um aspecto pesado demais para a idade que ainda pensava que tinha, mesmo que a juventude não tivesse lhe abandonado ainda, pelo menos cronologicamente. 

           Aquele parecia ser mais um dia comum em sua rotina. Acordar às 9:00 da manhã, pesado, como se toda vida não vivida até ali lhe esmagasse e a gravidade do mundo inteiro tivesse se concentrado em sua cama enorme, lhe impedindo de levantar, buscar o jornal na porta de casa segurando uma xícara de café passado na mão, acenar para a vizinha de 70 anos que regava as plantas religiosamente no mesmo horário e lhe olhava sempre com aquele olhar materno que mescla pena com reprovação, passar o dia fora trabalhando em algo que não conseguia mais encontrar sentido algum, e finalmente voltar para casa quando o sol já havia há tempos deixado o horizonte. As vezes, sua memória rebelde e indomável lhe fazia lembrar o quanto um sorriso de Isabelle injetava vida, pura e pulsante, diretamente dentro de suas veias e o quanto era apaixonado pela forma apaixonada com que ela se dedicava ao que fazia. A tudo que fazia, inclusive ser sua mulher. Mas aquele não foi um dia comum. Retornava de mais uma jornada diária de trabalho com o céu já tomado de estrelas e enquanto apertava com força descomunal a ponto de lhe machucar os dedos o controle do portão eletrônico de acesso à garagem que parecia ter esgotado a pilha,  um vulto negro pairou ao lado da janela de seu carro. A apatia imensa que parecia ter se adonado dele deu lugar a outra coisa. O horror agora lhe tomava e lhe subia pelos membros, ao vislumbrar que o vulto passara a delinear uma forma humana. 

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