Não desceu. Está aqui, até agora entalado. Só pode ser porque é verdade. Mania mais intolerável essa minha de ter nove motivos para sorrir, e me atrelar ao décimo, o da lágrima. O que me faz lembrar que os momentos em que sou feliz são os que, por algum motivo mais forte, eu esqueço que sou triste.

Obrigada por ter ruído meu dia. E obrigada por ter me feito sentir, mais uma vez. Bastou aquilo, para que eu desmanchasse meu sorriso e virasse mortal de novo, a ponto de achar alívio nessa condição. Teu par de olhos verde-cinza desesperançados pela janela só puxaram a tampa do meu ralo. E veio o esgoto.

Só um vidro dividia teus olhos dos meus. Um vidro fino, que dividia universos. E ares. O meu, condicionado, o teu denso, bem mais pesado do que você. Não, não tenho trocado. Mas tu tinhas, e trocastes comigo apenas pelo olhar. E nem mesmo tesouros escondidos por mares jamais navegados pagariam o preço. Mas como não sabes ler, seguirás tendo a minha falta de trocado como mais um olhar indiferente, mais um carro que se vai, mais um pouco do mundo que te rouba. Te rouba de decência, te rouba o que tu não tens, nem nunca teve, e me mata também um pouco imaginar que talvez nunca terás.

Se eu falasse o que quer que seja, eu bem sei que só se ouve a parte do “não” quando se tem fome. Só se guarda a cena do carro indo embora quando a solidão coloca a existência no lugar do crime. Que só se consegue enxergar aquele vidro quando se pensa em sonhar. Temos isso em comum. Com a diferença de que eu sinto o peso do real podendo comparar com a ausência dele, e você não. Tão triste, que chega a ser mais triste do que eu. Então calei. E chorei, minha criança.

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2 comentários:

  1. Esse texto me fez lembrar de duas coisas.

    Da ultima vez que alcancei algo, o cara tava na chuva. Quando alcancei e disse algo de bom, ele me contou que estava a 1 hora na chuva e me disse, sorrindo, que fui o primeiro que abri a janela.

    Também me fez voltar no tempo e lembrar de quando eu era criança e da primeira vez que eu percebi que mesmo que eu nao tivesse nem um problema pra se preocupar, sempre existiria fome no mundo.

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  2. Por estas mortes diárias, um momento de silêncio. Calo.

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