Nua e Crua





“Enfim só.” Disse para mim mesma, ao chegar em casa à noite depois da aula, largar a bolsa em cima do sofá, me desfazer do salto e descer do pedestal. O ato de arrancar a roupa e entrar no banho chega a ser agressivo neste momento. É ali, no banho do fim do dia que a vida começa. Banho é simbólico. Começa no ato de despir-se, desfazer-se das vestes que elegemos a partir do código de civilidade. Se não existissem outros, não nos vestiríamos (no conceito objetivo ou subjetivo da palavra).

Noutro termo, ali posso relaxar ao ponto de ser mulher. Posso desconstruir, criar, cantar conforme a minha música. Posso ter todos os respingos de euforia e outros tantos de mágoa. Posso ter um arsenal desnecessário (mas fundamental) de hidrantes, cremes, shampoos e sabonetes de estrelinhas que se liquefazem em contato com a água e toalhas com cheiro de jasmim. Não preciso dirigir bem, não preciso provar que minhas coxas não invalidam meu cérebro, nem disfarçar que eu acho o caminho sozinha, nem que eu sou mais esperta, ou mais rápida, ou menos mole. Posso ser feliz sem justificativas. Posso ser triste sem fingir na hora de rir.

Isso aqui é “vida real”, penso. O que quero pra vida ainda não esta pronto para mulheres. No mundo, mulher tem que ter colhões, e o resto é falácia feminista. O dia em que deixarmos de queimar sutiã para fixar a morada no território que ansiamos possuir, eu mudo de idéia. O dia em que pararmos de receber adjetivos e abordagens execráveis pelas ruas, qual se fossemos reprodutoras potenciais desfilando pela selva, eu repenso. No dia em que pararmos de comemorar um dia da mulher e nossos sabonetes de estrelinhas, seios, glúteos e lombares não anularem no espectro alheio nossas competências intelectuais, talvez tenhamos algum progresso. Por enquanto, tem que ser macho mesmo.

Fingimos o dia inteiro, ambos os sexos. Olhe em volta, olhe no espelho. Por que nos olhamos no espelho diariamente? O que adotamos como recurso de traje, trejeito ou tragédia nada fala sobre quem somos, mas sobre quem queremos que os outros pensem que somos. E usamos para cada situação diferente uma identidade de cima desse palco chamado “vida lá fora”, que nada mais é do que uma peça sem diretriz, mal escrita, composta por uma platéia recriminadora e baldia chamada sociedade.

Mas vai fazer análise. Cai a máscara de gênero, de estado civil, RG, profissional, de boa mãe, de bom samaritano, cai a pose mesmo. E o pior: nem mais se atrelar em racionalidade defensiva se pode, tem que sentir a coisa a fórceps. O que resta? Tem que ter tanto peito pra encarar o que resta, que eu preciso da minha analista ali segurando a minha mão. Progresso, porque já admito que precise segurar a mão de alguém (por favor, isso é uma metáfora). Com a persona escoradinha ali ao lado do divã, pra qualquer coisa, só por garantia.

“É preciso coragem para ser você mesma”, me diz meu amigo Gabito. Porra, e como! Tem máscaras que de tão acopladas à face já moldaram-se aos nossos rostos. Essas tão seguras, tão mais fáceis, tão conhecidas, essas que carregam um pedaço da epiderme quando arrancadas. E tem que ser assim, violentamente. Tem que querer, fazer, e ser, violentamente. O mundo pertence aos que se arriscam.

Mas deve se estar preparado para que, ainda em carne viva, as pedras da “exposição” caiam às pencas em vossos telhados. Dá licença? É proibido chorar em ambientes fechados? É proibido sentir ou só assumir que se sente? Quando viveremos a espontaneidade no prestígio da palavra? Quando a hipocrisia moral dará lugar a ética? Quando seremos livres o bastante para sermos, e pronto? E quem você pensa que é afinal? Acha que engana alguém?

2 comentários:

  1. Bravo, bravíssimo!

    Manu, cheguei a esse blog através do blog do Gabito. Sempre leio você, mas é a primeira vez que vou deixar um comentário. É que hoje, exatamente hoje, você disse algo muito forte, estreitamente ligado à minha pessoa, à minha personalidade.
    Eu estava repensando certas atitudes que tomo no meu dia-a-dia, mais precisamente que tomei no dia de hoje. E quando li o seu texto e a pérola "o mundo pertence aos que se arriscam (...) ainda em carne viva, as pedras da exposição caiam às pencas em vossos telhados" eu tive a certeza de que eu sou assim mesmo, devo continuar assim e que se dane o resto, não é mesmo, Manu?

    Como diria o Gabito, você é caleidoscópica! Parabéns pelo excelente texto!

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  2. "O que adotamos como recurso de traje, trejeito ou tragédia nada fala sobre quem somos, mas sobre quem queremos que os outros pensem que somos. E usamos para cada situação diferente uma identidade de cima desse palco chamado “vida lá fora”, que nada mais é do que uma peça sem diretriz, mal escrita, composta por uma platéia recriminadora e baldia chamada sociedade. "

    Quebra tudo, Manuela. Quebra tudo!
    Excelente é apelido pejorativo.

    Beijos.

    PS-Cheio de "estrelinhas" o texto, hein?

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