Mensagem de fim de ano




O texto a seguir desta vez não é meu. Uma excelência escrita por meu caríssimo amigo Gabito Nunes, do Caras Como Eu. Um neo-romântico, sem a falta de sal e pimenta de um Romeu shakespereano, mas sem os excessos da canalhice a la Nelson Rodrigues. Para quem não conhece o trabalho do escritor, permeado com uma malícia requintada, frases acrobáticas, maestria no verbo, pitadas de sarcasmo e pureza de sentido, vale a pena conferir.

Gabito é simultaneamente um colhedor e um artesão. Ele colhe as essências, os corações sufocados, a descrença, a dor, os amores em seu primeiro sopro, as paixões, as renúncias, os sentimentos ou a falta deles, as manifestações mundanas, as palavras possíveis e as não ditas como matéria prima, além de sua própria insustentável leveza de ser, e então confecciona escritos belíssimos. E apesar do nome de anjo, escreve como o diabo gosta. Por isso, claro, leio todo dia.
Segue:

FELIZ DESENCARGO DE CONSCIÊNCIA
" A mesma cena se repete quase o ano inteiro. De seis de janeiro a meados do Natal, tiro meu carro de ré da garagem, manobro, acelero em frente e cruzo com meu vizinho de porta. Aceno incerto com a cabeça num "e aí?" e ele age como se eu tivesse trazido o vírus Ebola para o bairro ou jogado sua filha pelada num fotolog.


Moro numa região nobre da cidade, apelidada jocosamente de "Beverly Hills". Onde os vizinhos não têm nome, onde os vizinhos cheiram free shop, onde os lares são doces, mas não irradiam laços nem desarranjos familiares. Aqui não tem churrasco na laje, não tem auê na rua, não tem dor de dente, não tem algodão doce, não tem Jorge Aragão a todo vapor, não tem criança jogando futebol com goleira de chinelo havaianas. Mas - uêba! - vai ter festa de Natal chefiada pelo vizinho fonofóbico. Pasme.


É a lei da recompensa. Debite sua frigidez e indiferença no mundo o ano todo e pague as contas do seu amor pagão no Natal, à vista, por desencargo de consciência. Instale luzinhas coloridas e ridiculosamente piscantes, ornamentos filiformes decorados com algodão em alusão à neve que miraculosamente rebentaria em temperatura veranista, e meiões megalo-patéticos onde um senhor de roupa vermelha e barba branquinha supostamente descarregará os presentes que não fizemos por merecer. Chamam de espírito lúdico, eu de esquizofrenia coletiva decorada com veadinhos.


A Broadway é aqui, onde todos tem uma peça super produzida a apresentar, sedentos pelos créditos, por desfilar em carro de bombeiros, disputando a tapa os figurinos de boca de palco. Pierrôs, Arlequins e Colombinas protagonizando grandes feitos. Enquanto isso, os pequenos gestos agonizam. A gente ama se odiando, à distância, trocando aqueles dois beijinhos "socialite" pra não borrar a maquiagem ou enganchar as máscaras cirúrgicas.


Ojerizo sim essa funçanata "dingobel", mande fazer uma placa de "anti-social". Penduro no pescoço com gosto, se "socializar-se" for dar um abraço anual, geralmente em dezembro, embalado por Vangelis ou Mariah Carey, ceando na mansão da tia Ilse, parabenizando canudos e anéis de formatura, cantando "adeus ano velho" bêbado, suado, com o cofrinho de fora. Feliz ano novo, tudo de novo.


Prometi nenhuma resolução este réveillon, mas abro uma exceção. Eu prometo gestos banais. Não fingir que não vi o braço amputado da tia que me vende capuccino, não fingir que minha avó não está mais viva, que desconheço a frustração sentimental da mãe do meu amigo, que não vejo o alcoolismo do meu colega, a cara suja de fome do piá indígena na sinaleira, que meus amigos narcóticos não são responsáveis pelo roubo do meu carro ou minha crônica falta de ar dentro do terno preto, feito sob medida para aparentar alguém que não sou. Meu pai me ensinou duas coisas nesta vida: 1. Não abra o vidro de pepino com faca; 2. "All You Need Is Love". E o filhodaputa estava certo. O resto é merda mal saneada.


Promessa feita, começo a atravessar velhinhas na faixa de segurança depois do Dia dos Reis, claro. Quando desmontarem essa parafernália que pisca e não cacifa um facho de luz pro fim do túnel. Não darei o gostinho de que esta "mini-reflexão-natalina" respingue iluminação artificial nas minhas boas ações. Só pra contrariar, coerentemente."

Depois deste texto, fico mais confortável pra desejar um feliz Natal e ano novo para todos. Pronto falei.

2 comentários:

  1. fato.
    ele expõe o que penso sobre essa época onde miraculosamente todos ficam solidários.
    onde incrivelmente todos "se procuram" como se fosse o encontro anual.
    aliás.
    nao tenho nada contra o natal, e sim o fato de essas mesmas coisas não serem feitas no decorrer do ano.
    no dia-a-dia de todo mundo, e não apenas em uma data marcada.
    entende?

    beijos

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  2. O Rodrigo ja comentou o que eu gostaria de comentar.

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