Nos olhos de quem vê. No peito de quem sente.




As divagações prodigalizadas e a dissimulação no tom que permeava a prosa já estavam lhe incomodando há algum tempo. Haviam percorrido quase todos os assuntos. Ela, na verdade. Ele se sentia perseguindo-a por plantações de milho, onde escutava sua voz, sem precisar de onde vinha. O tom da argumentação desbotada parecia uma verdadeira arte em protagonizar o nada. Sem vida. Sem calor. Vazio. Não conseguia encontrá-la. Exclamou quase em súplica:

- Quando tu vais finalmente tirar essa roupa?


Disse, com o olhar mais intrusivo que ela podia se recordar, pelo meio da íris intrêmula.

- Como assim?
- Vai tirar ou vou ter que tirar pra você?

Ela não acreditava. Só poderia estar ouvindo errado. Avistava por detrás dele uma enorme vitrine de vidro, que separava o café em que estavam sentados da rua. Lá fora passos nervosos. Ali dentro lenços de papel secavam suores de testas distintas, e os últimos goles dos restos amargos de expresso, tomados em pé. Lá fora, luz-cinza do urbanismo diurno, cujo clarão lhe rasgava menos a córnea do que o par de olhos a sua frente.

- Não entendi o que você disse.
- Precisa que eu fale mais alto? Quando vai tirar essa roupa?

O tom era incisivo, alguns escutaram. A expressão no rosto dele, a levava para bem longe da feição trivial da garçonete que seguia esbarrando as ancas largas em seu cotovelo e para bem perto do açougueiro de confiança de seu pai, que cortava uma peça de costela com a fúria equivalente ao prazer de cada talhada.

- Enlouquecestes? Quem lhe dá o direito de falar assim comigo?
- Tu mesma, através das tuas insinuações!

Pasma, atordoada, ainda incrédula, sentia algo lhe correr no cerne para estalar no rosto. Justo ela, recatada como era? Justo ela, que jamais havia tomado a iniciativa frente ao interesse em um homem? Ela, se insinuando? Não, jamais. Ela, nunca. Já prestes a se levantar, ele tomou a frente da menção lhe impedindo a passagem com a mão, indo de encontro com a dela. Segurando-a, disse :

- Espere!

Embora um leve rastro de tenuidade na voz, o olhar era o mesmo. Fixo, indiscreto, quase um estuprador de suas pupilas. Ela, uma moça de existência. Haviam tantas e tantas da outra laia. Ela, que não se contentava apenas com o nome de batismo ou do que se resolvia batizar. Ela que prezava por respeito, intimidade, tudo o que não tinham. Ah não, ela não. Ela queria gritar. Lhe queimar o rosto jogando-lhe o capuccino pela metade.

- Não te deixo sair daqui sem uma resposta! Ainda não entendeu a pergunta?

Sentia tudo que pulsava ao mesmo tempo. O que continha, ali parecia acordar. As maçãs rubras da face denunciavam o misto de vergonha e revolta, sem saber qual das duas lhe tomava em maioria. Como um raio, tudo aquilo que nunca dissera antes lhe correu pelo tubo-digestivo. Não trancou, quando viu que chegara até a garganta.

- O que pensa que eu sou? Qualquer uma? Pensa que sou como essas mulheres com quem te envolves? Pensa que sou garota de uma noite? Que tu vais comer e cuspir fora, feito caroço de azeitona? Ah não, meu caro. Eu não. Nunca lhe dei a liberdade para falar dessa forma comigo. Nunca, está ouvindo? Vocês homens não prestam. Vem uma mulher e só pensam em uma única coisa: sexo. Nada mais que isso. Selvagens! Exijo que se desculpe, antes de me levantar daqui para nunca mais olhar na tua cara!

Ele permaneceu a sua frente, e voltou a tocar a mão dela, prontamente retirada. Uma curva entre os olhos dele, advinda da testa franzida, lhe completavam a feição. Desta vez, a perplexidade lhe embasava a retina. Alguns minutos de eternidade em silêncio. Sem desviar o olhar, lhe falou calmamente.

- Não estava me referindo a sexo. Perguntei quando tu vais tirar esta veste que usa para o resto do mundo, e se abrir comigo. Desde a primeira vez que eu te vi, quero te encontrar mas tu não deixas. Tem sempre uma palavra, um sorriso insincero, uma fala vazia na tua frente. Mas algo em ti insinua, algo que não sei quando abre, mas sei quando fecha. E esse algo me diz que tu precisa da pergunta para fazê-lo. Queria apenas poder te enxergar como és. Queria que pudesse te mostrar, como se nunca antes tivesse feito e te machucado. Queria poder te conhecer sem artifício, sem vestimenta, sem máscara. Este sou eu. Muito prazer.


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