O (re)encontro* - Parte II



*Série “Contos e Desencontros”



Irreconhecível. Foi o melhor emprego que já usei da palavra. E não era pelo vestido florido mais comportado do que um cão amestrado. Nem pelas unhas curtas e peroladas, pela casa "tranqüila" demais, pelas sandálias rasteiras, ou pelas sacolas da fruteira carregadas de legumes, verduras, algumas bananas, maçãs e peras, quiçá era pela franja no cabelo penteado e escovado com as pontas voltadas para dentro.

Era pela falta de luz. Dos olhos, dos sorrisos, dos gestos, dos trejeitos. Nos tempos sofregamente áureos, nenhuma alma pequena poderia olhar fixamente sem desviar o olhar, devido à luz. Esta que eu não encontrava. Eu estava na casa de dois estranhos. “Você mudou”. “Você também.” O abraço prolongado e forte de sempre me reviveu o peito tal como um desfibrilador revive um coração recém infartado. Senti correr nas veias uma saudade imensa, que nem sei explicar como havia conseguido anestesiar.

Na noite do mesmo dia seu marido saiu, e ficamos a sós na cozinha enquanto ela preparava um chá. Eu estava escorada no balcão, ainda com a mesma cara pasma que fiquei desde o primeiro momento, observando aqueles trejeitos que não reconhecia, de uma fragilidade adquirida, de uma desconexão sofrida, de uma liberdade infringida. Ela me sorria educadamente, era cordialmente gentil, e aquilo servia para me matar por dentro. “Não quer chá? Quer vodka?”, disse entre risos incertos.

Não respondi nem sorri de volta. “Ele te bate?”. Foi o suficiente para ela cair no choro. Fui até ela e sentamos no chão da cozinha. “Quer que eu o mate?”. Vi o primeiro riso solto. Mas ele não a batia na carne. Fazia pior. Escutei ela me contar a história de como se conheceram, de como ele a foi domesticando, lhe podando primeiro as garras e por fim as asas. De como foi para o mundo e caiu naquela vida que não a pertencia. Ouvi sobre os jogos, as outras mulheres, os assassinatos diários.

Ela não o amava, nem ele a ela. Ele a provia na matéria, ela o provia na perversão da supremacia. Não a toa ele perseguiu um dos bichos mais selvagens, não a toa a falta de brilho me remetia a uma cabeça de caça pendurada na parede. E ela estava infeliz, de uma infelicidade que só quem trai a si mesmo conhece. Ela sabia. Eu sabia. “Decepcionada?”, me perguntou entre soluços, ao que respondi “ainda não”.

Disse o que qualquer um diria, não havia como escapar do denominador comum. Ela hesitou. Segurei o rosto cabisbaixo de desculpas esfarrapadas, erguendo sua cabeça a força e fixei os olhos dela nos meus, não lhe dando escolha, senão me encarar. Era preciso não falar. Em silêncio, ela escutou que havia me chamado procurando por ela própria, e que eu ali estava fielmente, cumprindo o papel.

Continuamos nos olhando em silêncio, até que eu disse que deveria ir embora. Ela entendeu. Peguei as malas que nem cheguei a desfazer. Da mesma forma de sempre, amava sua liberdade, e minha função acabava ali, sob o risco de engaiolá-la na amizade, o que seria uma traição verdadeira.

Beijei seus lábios, e ela me agradeceu por ter vindo, momento no qual eu pude enxergar os mesmos olhos vivos de outrora. “Sempre que precisar”. Não faço a mínima idéia por onde ela anda, o que me deixa feliz. O vento me sussurra que nunca no mesmo lugar. Ouvi dizer que pouco tempo depois disso se separou. Mas prefiro acreditar que ela se reuniu.

5 comentários:

  1. Lindo conto!
    Ricos detalhes fazendo o leitor fluir nas imagens do que se passa.

    Bravo!

    ResponderExcluir
  2. esquecer de quem realmente somos é o pior esquecimento.

    ResponderExcluir
  3. Concordo com a Cris. E tu escreve maravilhosamente bem, entrei aqui entre cantos, desencantos, contos, desencontros, e me restou ficar encantada demais. Além de linda tu é uma excelente escritora, parabéns. Como posso fazer contato contigo? Beijos!

    ResponderExcluir
  4. Oi Natalia. Obrigado pelo carinho. O e-mail do blog esta ali no perfil. =) Beijo.

    ResponderExcluir