De olhos bem fechados


No último 21 de dezembro, data em que fechei exatamente 27 verões de vida, antevendo o momento de encontro familiar planejei apresentar meu namorado aos familiares, compreendendo a necessidade de oficialização do meu estado civil, por mais idiota que isso soe. O que não previa, foi que neste mesmo dia conheceria um outro amor. Um grande amor, diga-se de passagem. Não o bastante, alguém oposto do que eu queria, ou que achava que queria, por categoria. Me foi apresentado pela minha tia, o vi pela primeira vez nos braços da minha prima. Era tampinha, manchado, tinha bigode, e sobrancelhas quase maiores que o bigode, era medroso, estava machucado, e miava ao invés de latir.

Pingado, seu nome em registro oficial, que com a intimidade virou Pin, Magic Pin, Pirlimpimpim, Tchuqui, Neni, Beibi, Peste, Hell’s Cat, Lambisgóio, Caçador de Moscas, Gato de Botas, Trampolim, Petit Gatô, Come-come, Gordo, Pelúcia, Sombra, Whiska’s Freak, Rom-rom-rom, Pula-pula, Gurizinho, dentre inúmeros outros apelidos denominativos de sua múltipla personalidade. Depois de tê-lo conhecido, finalmente entendi essa adoração das pessoas por gatos, já que cachorros sempre ocuparam meu pódio de desejo, cavalos de encantamento, pássaros de identificação, e demais animais de respeito e cuidado.

Os gatos me pareciam seres imprevisíveis demais, interesseiros, traiçoeiros. “Na verdade fostes que tu quem conhecestes os gatos errados”, foi o que meu namorado, já sabendo que teria de dividir meu coração, sentenciou. Meia verdade. Narciso nem sempre acha feio o que não é espelho. E eu também sou imprevisível, faço coisas por interesse (aliás, tudo que a gente faz tem algum interesse, fato), e sei ser bem traiçoeira quando quero, já que pertenço ao pior grupo do reino animal, o humano.

Aos poucos, fui me acostumando com suas peculiaridades. Achava graça de sua reação quando contrariado, ou quando eu ignorava seus apelos por mais comida,  subindo as escadas num miado grunido e resmungão e arranhando as paredes do andar de cima de puro ódio. Meu gato está entrando na gatorrescência, eu ria. Assim este “gurizinho” foi enchendo a minha casa, ao passo que se apropriava dela. De vida, de afeto, de existência.

Criou seus cantinhos preferidos, seus esconderijos secretos, fora adaptando-se à casa, concomitante ao processo de adaptação da casa às suas demandas felinas. O mesmo se deu dentro de mim. Ele foi se apropriando desse lugar dentro do peito, foi enchendo meu lado endurecido de ternura, meu lado sozinho de amparo, e essas manhãs bem cedinho em que o sol não vem de calor. Uma única fauna simbiótica, eu e o gato.

Acabei me acostumando com sua mania de me acordar antes das 6:00 da manhã miando na minha porta. Abria a porta e ele pulava na minha cama, enfiava o fucinho embaixo do meu queixo, me dava uma rabada na orelha, achava que meus cabelos espalhados eram brinquedos compridos super legais, e minha coberta um campo interessantíssimo de exploração. Uma algazarra, até que eu levantasse e fosse até a cozinha lhe dar ração,  enquanto resmungava que se tivesse ganhado um galo dormiria mais. 

(O resto deste texto foi escrito com esta trilha, e com uma bola de pelos entalando minha garganta.)

Verdade inteira é que esse bichano chamado Pingado me ensinou sobre o amor. Me ensinou sobre o óbvio, o que eu já sabia não sentindo, e o que se sabe sem sentir simplesmente não se sabe. O amor, em toda sua pluralidade, independe de condição, de lógica, de sensatez. Ora, “que pode uma criatura senão entre criaturas amar”, disse o Carlos. Pois é.

Eu tão bicho quanto ele, ele tão sentimental quanto eu. Cuidei de seus machucados, da sua falta, da sua condição de abandono, ele fez o mesmo por mim a seu modo. Falava com o gato o tempo todo. Sim, eu conversava com um gato. Por horas. Sobre tudo. Não sou tão louca se pensar na premissa de Lacan que diz que as pessoas nunca se entendem, dá na mesma. E ainda que ele falasse a língua dos homens, e eu falasse a língua dos anjos, nos comunicaríamos da mesma forma, porque a verdadeira comunicação sempre transcende o signo da linguagem.


Na ultima madrugada do dia 30 de junho eu tive o pesadelo que meu gatinho tinha subido no telhado do prédio durante a noite e caído de uma altura de 12 andares. E queria poder acordar dele.






In memoriam.

3 comentários:

  1. Acordei há uns 2 meses atrás com meu irmão me dizendo que minha gata (Gorda) tinha sido atropelada. Nunca chorei tanto na minha vida. Ela era minha cia, me esperava chegar em casa, estava sempre por perto. E sim, eu também conversava com ela. Dói. Muito.

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  2. Pois é... Só não gosta de gato quem não conhece... :)

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