Jogo de Xadrez





Sabe aquele tipo de criança que ao ser condenada por ter feito o que não devia fazia cara de inocente? Assim. O corretivo na verdade apenas servia de lição nível jardim-de-infância em como melhorar sua própria dissimulação. Da próxima vez estaria mais atenta à como fazer o que não se deve sem ser descoberta, ou caso fosse, a acobertar de maneira mais convincente e/ou menos danosa.


Eu não, eu era uma mula. Eu ia chorando (e alto) para o castigo. Ficar fechada no meu quarto sob ordens superiores de “pensar no que eu havia feito”, realmente me faziam pensar no que fizera e sentir culpa, crendo ser a mais desumana das criaturas da face terrestre. Quando era merecido, ressalvo. Quando não era, minha face em nada se aproximava da inocência, mas da raiva. E eu argumentava, amaldiçoava, eu dizia “eu te odeio” com todo calor da minha fúria. E acabava por levar castigo em dupla jornada.

Já no colégio, nas primeiras experiências de amizade, a fofoca rolava solta entre as amiguinhas. “Viu o cabelo da ciclana que coisa horrorosa?”, ela perguntava. “Parece que a mãe dela mandou podar a cabeça da guria como arbusto por jardineiro com mal de Parkinson”, ela apontava, arrancando gargalhadas maldosas das demais. Mas era a ciclana chegar perto para o discurso mudar. Para a ciclana não, para a ciclana ela dizia que tinha ficado muito moderno e combinado com o formato do rosto dela.

Eu era uma imbecil. A ciclana me perguntava: “o que achou do meu cabelo novo?” , e eu já suava frio. Era mais forte do que eu. Não conseguia não dizer que estava horrorosa e que não sabia o que ela estava pensando quando fez aquilo com ela mesma, o máximo que conseguia para abrandar era dizer que não tinha gostado e que não a valorizava, mas mesmo assim acabava a ciclana me odiando, e ficando amiga de gurias como ela, que não lhe atentavam a auto-estima.

Com os professores, a coisa funcionava em base de babação-de-ovo. A aluna mais aplicada, mais 
solícita . Por mais chacoalhadas ou injúrias que recebesse, ela jamais alterava o tom de voz, jamais exteriorizava qualquer reação de contrariedade, somente se calava em num ato de reverência à autoridade. Na análise conceitual do seu boletim, ela recebia MB (muito bom), excelente comportamento e postura. Pelo menos no que os olhos docentes alcançavam. Todos os apelidos maldosos de seus professores eram criação dela, além de desfilar o reino animal em sussurro a cada virada de costas. “Vaca”, “cadela” e afins.

Em termos de reino animal, eu era uma anta. Eu revidava, eu me posicionava contra a autoridade máxima, e cada injustiça por mim presenciada era fervorosamente contrariada e defendida. Quando eu era culpada, eu respeitava, calava e aceitava minha punição. Certa vez me acusei sozinha porque a turma iria ficar sem recreio se o culpado pelo sumiço do apagador não fosse identificado, e lá fui eu também sozinha até a sala da diretora pensando que ela podia me torturar que não entregaria os amigos envolvidos no delito.  Meu boletim geralmente vinha com um grande I (de insuficiente), no que diz respeito à postura e comportamento. Eu era um organismo vivo em sala de aula, e colégios não são feitos para pessoas, mas para objetos esponjosos cuja única função é a absorção e inanimação. I de incômodo.

Nós duas crescemos. Ambas pertencemos à mesma geração. Temos mais coisas em comum do que eu gostaria que tivéssemos. Nós duas gostamos de filmes, livros, viagens, frescuras de meninas, bebês e animaizinhos. No que afinal você é tão diferente de mim, além de ser arrogante, metida e destrambelhada, ela se pergunta. Não pergunta para mim, porque pessoas como ela não o fazem dessa forma, perguntam-se em silêncio.  

Nossa diferença querida, é que enquanto tu traias o teu primeiro namoradinho e aos olhos dele era a garota perfeita, eu fui lá para o meu e disse que gostava de outro garoto e virei o demônio. Nossa diferença é que no trabalho, enquanto você engolia um sapo atrás do outro, queria usar a cabeça dos seus colegas como degraus de escala e resolveu seduzir o seu chefe para tirar algum proveito monetário, eu mandei o chefe que me assediava para a puta-que-lhe-pariu e pedi demissão em alto e bom som.

Nossa diferença é que enquanto você é amável e solícita com todos, eu sou apenas com quem me vale a pena sê-lo, e como a maioria não me vale a pena, eu passo por antipática. Nossa diferença é que você nunca sentiu o peso do que é real, com o que ele tem de bom e de esmagador, nunca chorou em praça pública, nem amou sem interesse. Você jamais rasgou o script da peça e apelou para improvisação, nem nunca deixou que te fotografassem nos bastidores sem maquiagem.

Nossa diferença é estrutural meu bem. Além de você ser mais esperta e se dar bem melhor do que eu. Vive como quem joga friamente um jogo de xadrez. Nada em você grita, sai para fora e se mostra, como para mim. Nada fica visível a olho nu, nada sai na chuva e volta encharcada, nada despenteia, perde a pose. Nada te meleca o peito e te sua pelos poros, nada te estala como mão espalhada na face. Burra sou eu, não você. Mas eu não corrôo minhas próprias veias, não apunhalo as costas alheias, e não vou ter câncer precoce

5 comentários:

  1. Xeque-mate!!!

    Muito bom mesmo!!!

    PS- esse rosa combina contigo. hehehe

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  2. Cara, sensacional, um dos melhores textos do blog. Desde que descobri eu leio sempre, mas agora tive que me manifestar, meus preferidos são os teus textos satíricos e sarcásticos como este. Beijão e parabéns!

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  3. Que bom Renan, volte sempre então.

    E Gabi, tu é maligno.

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  4. Muito legal. Tu escreve muito bem! Fiquei horas aqui no teu blog, achei impecavel.
    Coloquei nos meus favoritos ja!!!
    Beijao

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  5. Tem muito hamburguense q vai morrer de câncer precocemente... :)
    E, sim, me identifiquei pq no reino animal eu era e sou ainda uma anta.

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